04/10/2023
Nos últimos anos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) aconteceram seis Retomadas Indígenas: 1) Retomada Kamakã, em Esmeraldas; 2) Retomada Pataxó, em São Joaquim de Bicas; 3) Retomada Katurama, em São Joaquim de Bicas; 4) Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho; 5) Retomada Xukuru-Kariri, em Brumadinho; e 6) Retomada Terra Mãe, do Povo Indígena Warao, de refugiados da Venezuela, que aconteceu no início de setembro de 2023, na cidade de Betim.
Na Retomada Terra Mãe, do Povo Warao, dezenas de famílias de parentes indígenas, além de outras etnias, com centenas de famílias sem-terra e sem-teto, ocuparam um grande terreno, mais de 100.000 metros quadrados (mais de dez hectares, o que equivale a mais de dez campos de futebol), propriedade que estava abandonada, ociosa, sendo espaço para depósito de lixo e entulho; propriedade que não cumpria sua função social em Betim, cidade com uma brutal desigualdade socioeconômica e com uma das maiores presenças de povos periferizados de toda a RMBH.
No terreno da Retomada Terra Mãe houve uma ocupação em 2011, que foi despejada com brutal pressão da polícia militar doze anos atrás. Na ocasião, o juiz da Vara Agrária de Minas Gerais mandou arquivar o processo, porque a parte autora não demonstrou interesse em continuar o processo. Diz-se que o terreno é espólio de herança. O fato é que estava abandonado muitas décadas antes de 2011, houve o despejo e o terreno continuou abandonado. Como a Constituição Federal de 1988 exige que toda propriedade cumpra sua função social, uma propriedade que não cumpre sua função social deixa de existir, como interpretam muitos juristas e constitucionalistas. Ou seja, a CF/88 não protege propriedade que não cumpre sua função social.
Sobre a Retomada Terra Mãe em meados de setembro agora (2023), um juiz de 1ª instância, da 1ª Vara Cível da Comarca de Betim, mandou reintegrar na posse quem não exercia a posse. Pior, com uma decisão que viola e desrespeita a decisão de nove ministros do Supremo Tribunal Federal que, no final da pandemia da covid-19, na ADPF 828, determinou que todos os Tribunais Estaduais e Federais criassem Comissões de Conflitos Fundiários que fizessem visita técnica in loco, audiência de conciliação e buscassem alternativas dignas e prévias que evitassem despejos que implicassem em jogar famílias ao relento nas ruas. Há também decisão do ministro Alexandre de Moraes que obriga o poder público a fazer políticas públicas que resolvam a situação de milhares de irmãos e irmãs que estão em situação de rua em centenas de cidades brasileiras.
Para nossa surpresa, um desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais não acatou um Agravo de instrumento da Defensoria Pública de MG, que exigia a suspensão da liminar de reintegração sobre a Retomada Terra Mãe, mas diante da manifestação da FUNAI[2], que manifestou interesse no processo e de arguição da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal requerendo que a competência para julgar o caso deve ser da Justiça Federal, diante da realidade de que se trata de Retomada Indígena e quem julga sobre questões relativas aos indígenas é a Justiça Federal, suspendeu a reintegração até que seja julgado de quem será a competência jurídica, se da justiça estadual ou da justiça federal.
Dia 27 de setembro de 2023, os povos da Retomada Terra Mãe bloquearam a BR 262 em Betim, MG, próximo ao local da Retomada, em protesto contra o anúncio já feito pela Polícia Militar de que faria o despejo na madrugada seguinte, dia 28 de setembro último (2023). A Polícia Militar de MG foi truculenta. Atirou no povo, jogou bombas de gás lacrimogêneo no meio da multidão que bloqueava a BR. Várias pessoas foram feridas. Idosos, mães e crianças também foram atacados com gás lacrimogênio. O direito de manifestação foi violentado pela PM de MG. E mais: fiscalização sobre a BR 262 é competência da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que não apareceu. Estranhamente e usurpando sua competência, quem apareceu em um piscar de olhos foi a PM de MG, que chegou com brutalidade absurda. Um sargento chegou imbicando um revólver no rosto de uma liderança indígena. Entretanto, os povos indígenas e sem-teto não arredaram o pé e continuaram a manifestação protestando contra o despejo iminente. Fizeram a PM recuar e reocuparam novamente a BR 262, o que causou mais de 15 Km de congestionamento. O povo dizia de cabeça erguida que jamais aceitará despejo e gritava: “Se o despejo vier, a BR vai parar! Bloquearemos a BR quantas vezes forem necessárias!”
No Censo do IBGE, de 2022, em Belo Horizonte e Região Metropolitana, 6.476 pessoas se autodeclararam INDÍGENAS. Em Belo Horizonte, 2.692; em Contagem, 796; em Betim, 761; Ribeirão das Neves, 362; São Joaquim de Bicas, 356; Santa Luzia, 211; Ibirité, 140; Esmeraldas, 137; Sabará, 117; Sete Lagoas, 117; Brumadinho, 113; Vespasiano, 112; Nova Lima, 81; Lagoa Santa, 78; Juatuba, 76; Igarapé, 67; Pedro Leopoldo, 49; São José da Lapa, 37; Matozinhos, 26; Rio Acima, 18; Mateus Leme, 27; Sarzedo, 15; Jaboticatubas, 13; Capim Branco, 13; Itatiaiuçu, 13; Mário Campos, 11; Itaguara, 09; Caeté, 08; Florestal, 08; Confins, 05; Raposos, 05; Rio Manso, 01; Baldin, 1; Taquaraçu de Minas, 01.
No ano de 2007, uma pesquisa do Centro de Documentação Eloy Ferreira (CEDEFES)[3], estimava a existência aproximada de sete mil indígenas em Belo Horizonte e RMBH. Cumpre evidenciar que o Censo do IBGE, de 2022, certamente mostra uma subnotificação, porque segundo vários/as recenseadores/as me disseram não era em todas as casas que o sistema abrir para perguntar se tinha outras pessoas indígenas, ou quilombolas, ou … Alguns recenseadores me disseram: “Quando o sistema abria em uma casa para anotarmos a existência naquela casa de outras pessoas indígenas, nas próximas casas, o sistema não abria mais. Com certeza o número de indígenas, de quilombolas etc. é muito maior do que o que foi anotado. Parece que tinha a estruturação no programa para não mostrar toda a verdade e viabilizar subnotificação, o que causa danos na formatação de políticas públicas. Não podemos esquecer que o Censo do IBGE, em 2022, aconteceu no desgoverno de Bolsonaro. Precisa verificar os pontos falhos do Censo em 2022.” Portanto, podemos inferir que ao redor de cada uma das 6.476 pessoas que se autodeclaram como indígenas na RMBH deve existir um número bem maior. Podemos deduzir que possivelmente o número de indígenas em Belo Horizonte e RMBH seja no mínimo duas ou três vezes mais do que o atestado pelo Censo do IBGE, ou seja, podemos estimar que exista acima de 13 mil indígenas em Belo Horizonte e RMBH. Em Betim, onde o Censo atestou a presença de 761 indígenas deve ter mais de 1.600 mil. Imaginemos o número de brasileiros que estão em todas as cidades que de fato são indígenas, mas que ainda não se autodeclararam por muitos motivos. Enfim, o número de indígenas desterritorializados e em contexto urbano deve ser maior do que o último censo do IBGE atestou.
O Brasil é muito mais indígena que muitos imaginam. Viva a luta indígena!
04/10/2023.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Povo Indígena Warao da Venezuela na Ocupação/Retomada TERRA MÃE, Betim/MG: “Não aceitamos despejo!”
2 – Terra Mãe, nova Ocupação de Povo indígena Warao e centenas de sem-teto, em Betim/MG. Despejo, NÃO!
3 – Respeito à decisão do STF na ADPF 828! Povo indígena Warao não aceita despejo na Ocupação TERRA MÃE
4 – 300 famílias na Ocupação/Retomada TERRA MÃE, em Betim/MG: Povo indígena Warao e centenas de sem-teto
5 – Ocupação TERRA MÃE: E decisão do STF p não despejar sem alternativa prévia? Povo indígena e sem-teto
6 – “Novo nascimento na Retomada/Ocupação TERRA MÃE, Betim/MG.” “PM matou 2 Sem Teto Bandeira Vermelha”
7 – Leo Péricles/UP, Poliana/MLB e Isa/MNDH na RETOMADA/OCUPAÇÃO TERRA MÃE, BETIM/MG: “Negociação, SIM!”
8 – Betim/MG: “Não arredamos o pé da luta pela moradia. PM violenta conosco. RETOMADA/OCUPAÇÃO TERRA MÃE
9 – Povo REOCUPOU a BR em Betim/MG após repressão da PM/MG: RETOMADA TERRA MÃE na luta contra despejo.v3
10 – Povo fez PM recuar e bloqueou de novo BR em Betim/MG: luta por moradia da Ocupação Terra Mãe. Víd 2
11- PM de MG reprime com truculência Bloqueio da BR em Betim/MG: luta por moradia da Ocupação Terra Mãe
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
[3] BAETA, Alenice M. Indígenas nas Cidades; memórias ‘esquecidas’ e direitos violados. In: ECODEBATE, 2021. Cf. https://www.cedefes.org.br/indigenas-nas-cidades-memorias-esquecidas-e-direitos-violados-artigo-de-alenice-baeta/