Projeto inspirador promove visitas em 4 territórios sagrados onde a comida, dança, cânticos e ritual de benzeção ao pôr do Sol criam conexão com o divino

 

Sentada debaixo de uma grande árvore, bem ao lado do sino da Igreja de São Vicente de Paula, vó Elza acompanha a chegada dos visitantes. Diante dela, uma mesa com quitutes genuínos mineiros foi delicadamente montada e decorada para celebrar o café da manhã. Pão de queijo, Kubu ( broa de fubá assado na folha de bananeira), biscoitos de polvilho, bolos de milho e banana, queijadinha de mandioca com queijo. Para beber, café coado na hora, adoçado com garapa e sucos de frutas da região como limão-capeta, maracujá e mexerica. Delícias feitas por mãos cuidadosas da comunidade para aquele primeiro banquete do dia em parceria com o chef Edson Puiati. Atenta ao movimento, ela sorri ao ver a comunidade em festa. Fazia tempo que não saía de casa, que não acompanhava o movimento do seu povo. Para a matriarca do Quilombo do Sapé, em Brumadinho, o sábado foi a oportunidade de reviver a comunhão em família. Foi a possibilidade de estreitar os laços e de se entregar aos abraços.  

 

Edson Puiati e vó Elza
Ao lado do chef chef Edson Puiati, vó Elza conversa sobre os saberes da comida ancestral de seu povo do Quilombo do Sapé, em Brumadinho(foto: Carlos Altman/EM)
Na sequência, o chão sagrado se desperta ao som de batuques e tambores. Mulheres do grupo de dança Sorriso Negro se apresentam para os turistas, que vieram de várias partes do Brasil. O canto de luta e resistência, potencializado pelos movimentos do corpo de uma beleza negra sem igual, é a herança ancestral de um povo que chegou escrazidado no Brasil, quebrou correntes e hoje, conquista seu lugar na sociedade atual – são, sim, rainhas e princesas que merecem nossos aplausos e reverência. Entre elas, Juliane Aparecida Silva, Michelle Lorraine  Silva, Gisele Núbia Santana e Silvânia Aparecida Oliveira Pinto que, soltaram a voz e, com um grito de louvor, reafirmaram o orgulho da cor da pele e do cabelo crespo.
“Este café da manhã é uma homenagem à minha irmã Filomena, que infelizmente, já não está entre nós. Foi ela que, tempos atrás, teve a ideia de promover um café da manhã com todos da comunidade. Ela fazia tudo com muito amor e carinho. Sinto muito a falta que ela nos faz. Mas sei que hoje ela está aqui conosco. Estou feliz em ver que nossa família, de irmãos, primos, netos e sobrinhos continua unida. Este café é fruto do amor e da bondade. Compartilho com vocês neste momento de festa”, emociona Matuzinha, anfitriã do Quilombo do Sapé.

Sorriso Negro
No quilombo do Sapé, o grupo Sorriso Negro se renova com a presença dos jovens da comunidade interessado pela cultura e sons da africanos(foto: Carlos Altman/EM)
E, assim, se dá início, ao som das músicas de Márcio Nagô, o ritual de visita ao 1º Circuito dos Quilombos, uma das 40 experiências culturais e gastronômicas oferecidas pelo projeto Céu de Montanhas, em Brumadinho. E, nesses quatro abrigos de resistência, onde famílias se agrupam para manter viva suas tradições culturais e religiosas, as emoções explodem! E olha que o dia só estava começando.
Com o intuito de preservar suas tradições e promover a valorização de sua identidade cultural centenária, os representantes dos quatro quilombos de Brumadinho abriram as portas de suas comunidades no último sábado, 2 de setembro. Esse evento turístico é uma iniciativa de turismo rural e comunitário desenvolvida pela Vale em parceria com o designer Ronaldo Fraga e a especialista Miriam Rocha.

Negro por Negro

Quilombo dos Rodrigues
No Quilombo dos Rodrigues, o orgulho de ser preto estar no vestuário, na dança e na música(foto: Carlos Altman/EM)
Saindo do Quilombo do Sapé, hora de conhecer as tradições do Quilombo Rodrigues. Outro território negro onde um cuida do outro. Quem vive neste lugar sagrado reverência a família, a natureza, as tradições culturais e religiosas e promove a resistência e tem muito orgulho de ver suas origens preservadas e divulgadas. Antigamente, eu vivia esticando meu cabelo com chapinha. Buscava, assim, me enquadrar em um padrão para pertencer na sociedade. Olha que não tem muito que na nossa concepção, de povo quilombola, não nos era permitido frequentar todos lugares. Mas, isso era errado. Virei a chave e disse: nós podemos tudo. Hoje, tenho orgulho do meu cabelo crespo. Fizemos da dor de nossos antepassados africanos escravizados para escrever letras de músicas que glorificam a nossa cor de pele. estaremos em luta por um país igualitário e que nos respeite. Somos pretos e temos orgulho disso! Emociona, Dina Braga, a mulher que lidera o projeto cultural do Quilombo Guimarães.
Reconhecido pela Fundação Palmares, o Quilombo Rodrigues desenvolve projetos culturais de dança, música, confecção de instrumentos musicais como o Xequerê( feito de cabaça) e produtos artesanais como pulseiras, terços e cordéis feitos com a semente da lágrima de Nossa Senhora. Tudo feito à mão, e quem visita o local pode confeccionar e levar pra casa sua própria bijuteria.
O Grupo afro Negro por Negro já realizou apresentações em diversas cidades mineiras, e no ano passado fez um tur pelo Nordeste. Alguns componentes têm função importante nas guardas de Congo e Moçambique da região. Com percussão marcante, o grupo usa tambores, xequerê, atabaques, violão, cavaquinho e gungas, cantam canções próprias e outras retiradas das tradições africanas da República Democrática do Congo e de Moçambique.
Se a música encanta, a manhã teve como refresco drinks ( com ou sem álcool)  preparados pela pesquisadora e mixologista molecular Marcela Azevedo, que há mais de 10 anos cria bebidas refrescantes com ingredientes colhidos nos quintais, com plantas comuns do dia-a-dia como funcho, alecrim, manjericão e os transforma em elixir de pura alquimia de prazer. “Quando me falaram que viria aqui criar uma parceria com o pessoal do Rodrigues, pedi para eles pegarem ervas para preparar os drinques. Ouvi que lá não tinha nada para ser servido como bebida. E, ao fazer uma busca no quintal, vi o contrário: plantações de funcho, hortelã,  mexerica, limão, alecrim brotavam aos montes. Tudo pode virar uma boa bebida. O segredo é a dosagem certa, e isso, eu passei pra eles”, orgulha-se Marcela.

Feijoada e noites traiçoeiras

Quilombo Ribeirão
No almoço no Quilombo Ribeirão, a feijoada, maior herança dos negros escravizados à culinária brasileira, reinou soberana(foto: Carlos Altman/EM)
“Sejam bem-vindos… só estava faltando você”. Chegou a tão esperada hora do almoço no Quilombo do Ribeirão. Em um restaurante simples, um caldeirão de feijoada era colocado na mesa de apoio. Ao lado, outra panelona de arroz e travessas de couve, laranja e farofa. Uma comida brasileira para fazer daquele sábado um dia especial. O tempero estava na medida e as porções de gordura dos pedaços de porco na quantidade, digamos, recomendada por qualquer cardiologista. O prato, que teve como origem uma iguaria criada por negros escravizados, surgiu em terras brasileiras no Brasil colonial. A cada garfada, sabores ancestrais eclodiram no paladar provocando uma sensação de prazer. Alguns visitantes repetiram mais de uma vez e saciaram a vontade de provar a culinária simples que toques de amor como tempero. E para fechar a comilança, que sobremesa! Convidada para o evento, a renomada chef Tainá Moura deu uma consultoria e preparou uma delícia levemente adocicada feita com mousse de queijo, mexerica e farofa de rapadura…. divino!
Durante todo o banquete no “Palácio do Ribeirão” os presentes ouviam, ao lado, as vozes singelas das “cigarrinhas do quilombo”. Formado por moradoras da comunidade, as divas cantoras soltavam, à capela, cânticos tradicionais de Minas e louvores religiosos como Noites Traiçoeiras: “Deus te trouxe aqui/ Para aliviar os teus sofrimento/ É Ele o autor da Fé/ Do princípio ao fim/ Em todos os seus tormentos/ E ainda se vier noites traiçoeiras/ Se a cruz pesada for, Cristo estará contigo/ O mundo pode até fazer você chorar/ Mas Deus te quer sorrindo. Essa música era o prenúncio do que estavam todos a experimentar no próximo e último quilombo visitado.

Bênçãos de Maria

 Dona Nair
Benzedeira Dona Nair, da Comunidade dos Marinhos, promoveu um dos momentos mais emocionantes do Circuito dos Quilombos(foto: Carlos Altman/EM)
Feche os olhos, respire fundo. Imagine ouvir o som ao redor: assobios e grunhidos de maritacas, bem-te-vis e pica-paus. Tente ouvir o vento balançando as folhas. Sinta o cheiro da grama, das flores da grande mangueira e do pé de carambola. Agora, abra os olhos, tente ver o pôr do Sol, se despedindo atrás das montanhas após um dia intenso de emoções. Nesse exato momento, naquela hora mágica, dará o início do melhor do Circuito dos Quilombos e, também, o fim de uma maratona que se iniciou em um café da manhã, se prolongou por visitas em abrigos fraternos onde cada habitante desses quilombos são reis e rainhas do lugar agora, se concretiza, com a benção do Maria.
Ao lado da Igreja de Nossa Senhora, Dona Nair, mãe-rainha benzedeira do Quilombo dos Marinhos, flutua sobre o chão sagrado do terreiro do lugar. Em sua apresentação inicial, ela fala das dificuldades que o povo da comunidade já passou e ressalta a importância dos laços familiares para se manter vivos e unidos: “Teve um tempo que não tínhamos nada pra comer, e a fome era um tormento. Foi então, que percebendo a dor do flagelo que não poder levar a comida à mesa, irmãos e irmãs da comunidade se uniram, trouxeram o alimento que tinham em seus quintais como milho, feijão, quiabo e mandioca e, deste gesto de amor e solidariedade, nasceu a apresentação da Dança da Colheita, uma forma de agradecer o alimento recebido”.
E nesse terreiro, ela inicia sua benzeção. Mas antes, Dona Nair relembra:  “Teve o caso de uma mulher em estado terminal de câncer, que estava desenganada pelos médicos, que ao ouvir a bênção, se viu curada. Não sou eu que promovi a cura. Mas, ele, que está lá no alto, acima de todos nós. Foi a fé dela em acreditar no poder divino que a fez se curar e hoje ela está bem”. E como se estivesse em transe, a voz entoa cânticos reconfortantes que já promoveram milagres. “O meu colchão é areia, meu cobertor, as ondas do mar. Quer escutar a minha benção, para Jesus abençoar!” Tive o privilégio de ter conhecido e, sugiro, que todos vivenciem esta experiência. Prepare-se, um mar de lágrimas saltam aos olhos e têm, sim, o poder de lavar a alma. Gratidão!

Céu de Montanhas

Céu de Montanhas oferece 40 experiências culturais, religiosas e gastronômicas em Brumadinho(foto: Carlos Altman/EM)

 

Céu de Montanhas oferece 40 experiências culturais, religiosas e gastronômicas em Brumadinho(foto: Carlos Altman/EM)
O circuito começou às 9h da manhã e se estendeu até as 17h, proporcionando aos visitantes uma experiência repleta de música, religiosidade, boa comida e histórias fascinantes. A programação teve início no Quilombo do Sapé. A segunda parada do circuito foi no Quilombo de Rodrigues, onde o grupo de percussão Negro por Negro recebeu os visitantes com muita animação. Lá, eles puderam aprender passos de dança, conhecer a história da comunidade e experimentar drinks preparados com ingredientes locais pela Chef Marcela Azevedo. Ao chegarem ao Quilombo de Ribeirão, os turistas foram recebidos por Jaime Ferreira, um morador local e guia turístico. Ali, eles mergulharam na cultura quilombola através da música, da dança e de uma tradicional feijoada. Como sobremesa, puderam saborear um delicioso doce de mexerica preparado em parceria com a Chef Tainá Moura. Em Marinhos, o mais antigo dos quatro quilombos, os visitantes tiveram a oportunidade de assistir a uma apresentação de cânticos tradicionais, aprender sobre a história e as manifestações culturais locais e ver de perto o artesanato produzido pelas mulheres da comunidade. Com uma roda de bênçãos conduzida pela matriarca Dona Nair, os visitantes se despediram dos quilombos.
O Circuito de Quilombos de Brumadinho é uma das experiências turísticas do catálogo Céu de Montanhas. Lançado em julho de 2022, o projeto reúne cerca de 40 vivências rurais, gastronômicas, artísticas e bem-estar disponíveis na região. A iniciativa é resultado de um extenso trabalho de mapeamento, assessoria técnica e sistematização da oferta de turismo rural e de base comunitária no município.
Segundo Daniele Teixeira, analista de Sustentabilidade da Vale e coordenadora do projeto, o catálogo foi pensado para diversificar a oferta da região e facilitar o acesso do turista aos atrativos. “Essa ação busca aumentar o tempo de permanência do visitante que vai a Brumadinho e fortalecer a contribuição do turismo para a economia local”.
As vivências do catálogo Céu de Montanhas são comercializadas pelo receptivo HT Happy Travel https://hthappytravel.com ou diretamente no site www.ceudemontanhas.com.br 
Print Friendly, PDF & Email