Como o golpe foi construído a partir da condenação de Zé Dirceu
Tem tanta coisa envolvida no julgamento de Lula que fica até difícil recortar um aspecto específico para comentar. É esse o meu esforço neste pequeno ensaio. Quero discutir aquele que me parecer ser o núcleo central da crise que vivemos, algo que não é exatamente uma novidade, mas que já está circulando por aí (e nós não demos a devida atenção) desde 2005: a aplicação seletiva do paradigma indiciário ao Direito Penal.
Começou lá, há 13 anos, no tão midiaticamente aclamado “julgamento do mensalão”: a Ministra Rosa Weber, na Suprema Corte, disse explicitamente que não tinha provas cabais contra José Dirceu, mas que ainda assim o condenaria, com base na bibliografia disponível.
Como Zé Dirceu é um homem odiado à direita e à esquerda, aplausos foram ouvidos dos dois lados. A direita odeia Zé Dirceu porque sabe, perfeitamente, que ele é um dos maiores quadros da história da esquerda brasileira. A direita, que não é boba, tem todos os motivos do mundo para odiar Zé Dirceu.
Alguns grupos da esquerda odeiam Zé Dirceu porque se sentiram desprestigiados no governo popular que ocupou parte do Estado em 2003. Odeiam por ressentimento. Poucos sentimentos humanos são tão baixos e amargos como o ressentimento.
Enfim, o fato é que Zé Dirceu foi condenado e não aconteceu nada, e não fizemos nada. Ou melhor, Zé Dirceu foi para o sacrifício e tudo continuou caminhando como se nada tivesse acontecido. Mas aconteceu, aconteceu tudo: a matriz do golpe foi forjada ali, sob a forma da incorporação ao repertório do direito penal brasileiro de um paradigma teórico que pode até ser legítimo em outras ciências sociais ou mesmo em outros ramos do direito, mas jamais no direito penal. Jamais!
Pra explicar melhor, apresento um autor que é muito conhecido pelos historiadores profissionais: Carlo Ginzburg, o historiador italiano que nos anos 1970 teorizou sobre o tal paradigma indiciário, em um ensaio cujo título é “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”.
Trata-se de um texto bastante lido nos cursos de graduação em História. Penso que dizer umas poucas palavras sobre o texto de Ginzburg pode nos ajudar a compreender algo a respeito da crise brasileira contemporânea. É que o conhecimento histórico é útil à vida.
O argumento de Guinzburg é muito simples: no século XIX afirmou-se nas ciências humanas um paradigma científico que propõe o conhecimento da verdade através da interpretação de pequenos indícios. O autor toma como exemplo desse paradigma indiciário o “método moreliano” de verificação da autenticidade das obras de arte.
Ao invés de buscar a “verdade da obra” nos traços mais notórios das escolas estéticas (que são mais facilmente imitáveis pelo falsificador), o especialista deve se debruçar sobre os detalhes que apontam para as características pessoais dos artistas. Aqui, no indício, no que o falsário não consegue imitar, estaria a “verdade da obra”.
O paradigma indiciário rendeu bons frutos para a pesquisa histórica, tendo na segunda metade do século XX se transformado em um importante programa de estudos históricos que costumamos chamar de “micro história”.
Ou em outras palavras, para que o meu argumento fique mais claro: o historiador pode basear suas hipóteses na interpretação criativa dos indícios. O juiz penal não pode. E isso pelo simples fato de que a função do historiador não é julgar, é compreender, como já disse Marc Bloch, outra importante referência para os historiadores profissionais. Já o juiz penal tem poder sobre aquilo que é o elemento mais sagrado do contrato social civilizado: a liberdade do corpo.
O que acontece se um historiador, em um livro ou em um artigo, apresenta ao seu leitor uma tese baseada na interpretação criativa de indícios?
Se o procedimento de pesquisa e escrita não for bem executado, estará trazendo a público um conhecimento pouco confiável, frágil, o que é um problema grave, mas que pode ser contornado por outro historiador, por outro especialista mais cuidadoso.
Por outro lado, se um juiz penal procede assim, um inocente pode ser condenado. Não existe tragédia maior que a condenação de um inocente.
O que o Juiz Sérgio Moro e seus colegas de Porto Alegre fizeram no caso Lula foi, justamente, a aplicação seletiva ao direito penal do paradigma indiciário, tal como a Ministra Rosa Weber havia feito em 2005.
Se vocês tiverem tempo e paciência para ler a sentença do Juiz Sérgio Moro, verão que o argumento fundamental é: em “atos de ofício indeterminados”, Lula beneficiou a empreiteira OAS e recebeu o imóvel do Guarujá como propina. As visitas do casal Lula da Silva ao apartamento e as obras que teriam, segundo os delatores, sido coordenadas por Dona Marisa Letícia, são indícios que comprovam a culpa do réu.
Meus amigos e minhas amigas, em direito penal, indícios não podem comprovar culpa. Cada um de vocês pode achar que o apartamento estava de fato sendo reservado para Lula, o que também não significa que ele o compraria com dinheiro sujo.
Por que Lula não poderia comprar o imóvel com seus próprios proventos, com dinheiro legal, com fonte declarada? Só por que ele não tem berço, só por que ele nasceu no Nordeste, não pode, honestamente, comprar um tríplex no Guarujá? Este é outro aspecto do caso Lula que diz muito sobre a mentalidade do brasileiro médio. Mas não é disso que quero falar, não aqui.
Retomando o fio.
Vocês têm o direito de achar que Lula é culpado, que os indícios bastam, mas aí, como disse Reinaldo Azevedo (sim, estou citando Reinaldo Azevedo. Tempos estranhos!), já é uma questão de crença. E crença é assunto de foro íntimo. Cada um que se resolva com a sua.
O fato, fato mesmo é: Sérgio Moro, que agiu como promotor desde o início do processo, não conseguiu provar a culpa e mostrar em quais “atos de ofício” Lula teria beneficiado a empreiteira. Se não provou cabalmente, meus amigos, não pode condenar. Simples assim.
Aí você pode dizer: então é impossível combater a corrupção, pois crime de corrupção não deixa provas cabais.
Quem disse?
Quem disse que crime de corrupção não deixa provas cabais?
E o Aécio? E o Temer? E o Cunha? E o Cabral? E o Gedel?
Conta na Suíça, áudio, mala de dinheiro com 500 mil reais, apartamento à la Tio Patinhas. Tudo isso é prova cabal, taxativa.
Ah, mas e quando essas provas cabais não existem?
Se as provas cabais não existem, não pode condenar. Simples assim.
Pode ser que com isso o culpado fique impune? Pode sim, paciência!
É melhor o culpado ficar impune do que o inocente ser punido injustamente. Repito: a tragédia do Estado de direito não é a impunidade. É a punição injusta.
Mas como nada é tão ruim que não possa piorar, o tal paradigma indiciário está sendo aplicado seletivamente por algumas frações do judiciário brasileiro, aplicado, apenas, contra lideranças do campo político progressista. A interpretação criativa dos indícios só serve se for para condenar políticos progressistas.
É por isso que temos que tomar cuidado com uma máxima que está sendo verbalizada por algumas vozes da esquerda brasileira:
“O que aconteceu com Lula já acontece há muito tempo com pobres e pretos, e não tem nenhuma novidade”.
A leitura está errada. A máxima correta seria:
“Aconteceu com Lula porque já acontece há muito tempo com pobres e pretos”.
Entendem a diferença? Lula é uma importante liderança política, a mais importante do Brasil moderno. Foi Presidente da República, discursou na ONU, tomou chá com a Rainha da Inglaterra, mas nunca fez parte das elites. Ele pode até ter achado, em algum momento, que tinha sido aceito no clube, mas na real nunca foi.
É por isso que o judiciário, poder historicamente conservador onde os grandes cargos são transmitidos como um tipo de herança familiar, está fazendo o que está fazendo com Lula.
Por um motivo muito simples, meus amigos: Lula nunca fez parte das elites brasileiras. Para as elites da terra, Lula sempre foi preto, pobre, favelado, nordestino, peão analfabeto. E pior: sujeito abusado, insolente, que não “sabe o seu lugar”.
Se eles estão fazendo isso com Lula, com alguém conhecido internacionalmente, o que não farão com pretos e pobres desconhecidos? A situação dessas pessoas ficará ainda pior.
A condenação de Lula é simbólica, é como se as elites da terra estivessem dizendo: “vocês ousaram eleger um dos seus para governar esse país, ousaram consumir, ousaram estudar na universidade. A brincadeira acabou. Voltem para o seu lugar, de onde nunca deveriam ter saído”.
Entendem, amigos? Sob todos os aspectos a condenação de Lula é uma tragédia: é uma tragédia para o contrato social civilizado, que não admite a interpretação criativa de indícios como procedimento do direito penal. É uma tragédia para a população brasileira mais pobre, que ficará ainda mais vulnerável ao arbítrio da lei.
Defender Lula, de todas as formas, custe o que custar, é uma obrigação moral.
*Rodrigo Perez Oliveira é doutor em História Social pela UFRJ e professor adjunto de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, atuando na graduação e na pós-graduação. Rodrigo Perez é autor do livro “As armas e as letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército Brasileiro (1881-1901)”, publicado em 2013, pela editora Multifoco, e organizador do livro “Conversas sobre o Brasil: ensaios de crítica histórica”, publicado em 2017, pela editora Autografia. Os interesses de pesquisa do autor estão concentrados nas relações entre a epistemologia histórica e a história política, sendo sua especialidade a história da historiografia e do pensamento político brasileiros. Atualmente, Rodrigo Perez vem desenvolvendo pesquisas sobre a historiografia brasileira produzida nos anos da redemocratização e sobre a experiência de crise institucional que desestabiliza a cena política brasileira desde 2013