O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com mais uma ação civil pública para obter decisão judicial que obrigue a União e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a concluírem, com urgência, processo de regularização fundiária e consequente titulação de território quilombola.
Desta vez, trata-se da Comunidade Quilombola Morro de Santo Antônio, localizada na zona rural do município de Itabira (MG), a 110 km de Belo Horizonte, na região conhecida como Quadrilátero Ferrífero. O acesso à comunidade, situada a 18 km da sede municipal, dá-se por precária estrada de terra, aberta na década de 1960.
Os moradores relatam constante êxodo dos integrantes da comunidade para a área urbana, devido à falta de oportunidades de trabalho na localidade e à dificuldade de manutenção das crianças e jovens na escola, pois não há escola em Morro de Santo Antônio e o transporte escolar para as escolas da sede é difícil, em razão das péssimas condições da estrada: em dias de chuva, o transporte escolar simplesmente não chega, sendo comum as crianças ficarem uma semana ou mais sem frequentar a escola por esse motivo.
Além da falta de manutenção adequada da via de acesso à comunidade, outros problemas denotam a falta de atenção dos órgãos públicos, como inexistência de saneamento básico e ineficiência do serviço de iluminação pública e doméstica.
Interesses minerários – A Comunidade Morro de Santo Antônio foi certificada como remanescente de quilombo em 2011. Naquele mesmo ano, o Incra instaurou o procedimento de identificação e delimitação territorial, mas, a partir daí e ao longo dos nove anos seguintes, não foi dado qualquer seguimento às atividades necessárias para a regularização fundiária das terras ocupadas pela comunidade.
A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese/MG) informou ao MPF que parte do território quilombola foi apropriado pela mineradora Vale, havendo também moradores não quilombolas residindo na área.
A Vale, por sua vez, alegou que é proprietária de imóveis próximos à Comunidade Morro do Santo Antônio, “que não dizem respeito a eventual apropriação de parte do suposto território quilombola, como equivocadamente alegado, mas não provado, (…) pela Sedese”. Segundo a Vale, como não houve a regularização fundiária do território pelo Incra, com a expedição do respectivo título de propriedade coletiva, “não há que se falar em território quilombola”, sendo “extremamente difícil à Vale e a todos os terceiros verificar eventual apropriação de parte de um suposto território quilombola, pois esse não existe”.
Inércia administrativa – Essa é a terceira ação, com mesmo objetivo, ajuizada pelo MPF nas últimas semanas em favor de comunidades quilombolas. Em todos os casos, os processos estão paralisados há anos, e a própria autarquia informou que não há recursos no orçamento do Incra, nem qualquer previsão para a continuidade dos trabalhos relativos à regularização fundiária do território da comunidade Morro de Santo Antônio.
“Trata-se de uma situação de grave desídia administrativa, que infelizmente só tem piorado a cada ano. E isso apesar de a Constituição ter determinado expressamente que o resgate dessa dívida histórica fosse feita na maior brevidade possível”, afirma o procurador da República Helder Magno da Silva.
O MPF destaca que “o atraso na realização de atos administrativos próprios, sem justificativas razoáveis ou escusáveis, com providências nunca concluídas e procedimentos insuficientes, podem caracterizar omissão da Administração, até porque sobre tais atos — administrativos — aplica-se o princípio da eficiência” e “atrasos tão evidentes e inequívocos como o relatado na presente ação equivalem à negativa do direito”.
Queda drástica nos números – As cerca de 17 mil famílias quilombolas que vivem em terras tituladas representam apenas 8% das 214 mil existentes no Brasil, e, dos procedimentos de demarcação quilombolas em tramitação no Incra, 44% deles foram abertos há mais de 10 anos. A maior parte desses processos (85%) não conta sequer com o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), fase inicial que identifica os limites do território quilombola a ser titulado.
Das 1.794 comunidades quilombolas sob análise no Incra de 2003 a 2020, apenas 46 foram tituladas. Destas, 23 receberam títulos parciais. Em 2019, foram expedidos apenas dois títulos (um em Santa Catarina e outro no Paraná). Em 2020, não foi expedido nenhum.
O número de processos de titulação para territórios quilombolas abertos pelo Incra despencou para o menor índice dos últimos 17 anos. Dados da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas mostram que foram abertos 16 processos de titulação de quilombos em 2019. Entre janeiro e maio de 2020, apenas um. Os números são bem inferiores à média de 77 novas análises territoriais entre 2016 e 2018, e apenas uma fração dos 148 processos anuais abertos pelo Incra entre 2004 e 2009.
Segundo levantamento da organização Terra de Direitos, no atual ritmo, o país levará 1.170 anos até que todos os processos abertos no Incra sejam concluídos. Esse cálculo não levou em conta a pandemia, que atrasou ainda mais o cronograma.
Importância – De acordo com o MPF, é importante considerar que as terras atualmente ocupadas pelas comunidades quilombolas garantem não só sua reprodução física, social, econômica e cultural, como a preservação desses grupos étnicos e de seu legado, elementos fundamentais do patrimônio nacional.
“A regularização, o reconhecimento e a outorga definitiva do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades quilombolas correspondem a instrumentos de promoção de inclusão e justiça sociais, sobretudo porque a maioria dos beneficiários diretos de tais políticas são pessoas em situação de vulnerabilidade social, no mais das vezes vítimas também da discriminação racial que ainda impera no país”, afirma a ação.
O procurador da República afirma ser “inegável que a demora na demarcação e titulação da área de remanescente de quilombos ocupada pela Comunidade Quilombola Morro de Santo Antônio acarreta grande insegurança jurídica a seus integrantes, especialmente quando se tem em vista que o território tradicionalmente ocupado por seus integrantes vem sendo utilizado pela mineradora Vale, a qual se aproveita justamente da morosidade do Incra na confecção do RTID para justificar a ocupação de terrenos na região”.
Para o MPF, “Não podemos também desconsiderar questões como discriminação racial, inclusive sistêmica, visualizável pelas condições precárias de sobrevivência e pela carência de serviços e bens essenciais de grande parte das comunidades quilombolas mineiras. No caso da Morro de Santo Antônio, temos ainda questões envolvendo a intrusão de terras tradicionalmente utilizadas pela comunidade por pessoas alheias à sua tradição e contexto históricos”.
Pedidos – A ação pede que a Justiça Federal obrigue o Incra a iniciar as atividades de regularização do território quilombola da Comunidade de Morro de Santo Antônio no prazo máximo de 60 dias, finalizando-o em até 12 meses, com o consequente reconhecimento, demarcação e titulação da área.
Também foi pedida a condenação da União na obrigação de prover as verbas orçamentárias necessárias à realização dos atos e atividades para a conclusão do procedimento.
Foi pedida ainda a condenação da União e do Incra por danos morais coletivos no valor mínimo de um milhão de reais, a ser aplicado em ações ambientais e sociais em prol da comunidade de Morro de Santo Antônio.
(ACP nº 1022556-25.2021.4.01.3800)
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