14/05/2019
Perambular pelo Museu Afro Brasil é entrar em um jogo labiríntico denso como é e sempre foi a produção de cultura afro-brasileira e africana. É possível se deparar com um altar vermelho para o orixá Xangô; em um parede próxima, a arte de memória e resistência do pintor Sidney Amaral. Mais dois passos, um corredor colorido do construtivista Rubem Valentim, adornado por seus escritos: “Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade.”
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Localizado entre árvores de altas copas no Parque Ibirapuera, zona centro-sul de São Paulo, o Museu Afro Brasil é uma instituição que há quinze anos materializa e desvela a importância vital de artistas negros e negras no Brasil, desde o século XVIII até a contemporaneidade.
“É um museu muito necessário, porque conta a história do Brasil na perspectiva profunda e importante da positividade da presença negra e afro-brasileira na história e cultura nacional, perspectiva que um dia o país tem que encontrar”, explica Ana Lucia Lopes, coordenadora de planejamento curatorial.
O país do negro Machado de Assis e do gênio barroco Aleijadinho ainda tem dificuldades de encontrar outras narrativas que não a da escravidão para falar do papel negro na formação cultural e social do país. Como Emanoel Araujo – diretor curador do Museu Afro Brasil – escreveu:
“Não se pode dizer que a vigorosa contribuição do negro à formação de uma cultura legitimamente brasileira não tenha interessado aos nossos estudiosos. Essas pesquisas, todavia, têm praticamente se limitado à escravidão propriamente dita e à herança negra encontrada no sincretismo, na música, no idioma, na literatura e nos costumes. As artes plásticas sempre foram relegadas a plano secundário, limitando-se praticamente a trabalhos isolados e incompletos”.
Os mais de sete mil objetos do acervo do Museu oferecem uma contra narrativa: “O Museu Afro Brasil revela isso com a materialidade das obras, não só com discurso puro. Mostra muita competência e dignidade da população africana e afrodescendente nesse país. É o encontro da positividade, da resistência, encontro cidadão. É um museu da autoestima, do orgulho, que funciona como espelho para crianças, jovens, adultos e idosos finalmente se verem representados nesse Brasil.”
O acervo do Museu Afro Brasil nasceu da coleção e pesquisa do artista Emanoel Araujo: artistas nacionais e internacionais conceituados e artefatos de populações africanas de matrizes brasileiras formam um acervo que arvora temas como ancestralidade, religião e trabalho.
Esses guarda-chuvas temáticos não estão separados uns dos outros. Pelo contrário, se imantam e se complementam, em uma costura que revive – e muitas vezes apresenta pela primeira vez – o passado junto com a produção contemporânea.
“O Museu Afro Brasil tem um núcleo de arte que vai do século XVIII até a arte contemporânea. É muito importante esse encontro com a contemporaneidade – e é difícil uma exposição do Emanoel que não tenha – porque senão não se atualiza a memória. O contemporâneo rompe e atualiza o tradicional, e também será futuramente o nosso tradicional. A História não pára”, explica Ana.
Montagens de exposições como a em cartaz “A cidade da Bahia, das baianas e dos baianos também” são amparadas em pensadores negros e negras dos mais diversos campos de conhecimento: “em todos os temas há sempre a preocupação de um ator negro escrever sobre ele. Esse é museu onde o negro é a primeira pessoa, então não tem como na pesquisa não ser também.”
Ainda que o público do Museu Afro Brasil seja muito diverso, são as crianças e jovens que durante a semana ocupam os corredores da instituição: cerca de 40 mil estudantes passam todo ano pelos salões do museu, oriundas de escolas públicas e privadas. O programa educativo do museu trabalha com visitas mediadas, formação de professores e projetos específicos para organizações não governamentais e instituições, como a Fundação Casa.
“O estudante que vem ao Museu Afro-Brasil tem condições de acessar um repertório da história da arte brasileira a partir da presença de artistas negros que dificilmente se encontra em outro lugar, acessando a materialidade de uma produção artística sempre marginalizada”, explica Rafael Domingos Oliveira, auxiliar de coordenação do núcleo educativo.
O programa educativo também ampara escolas e formações a cumprir a lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade de ensino da história e cultura afro-brasileira. Temas como escravidão são abordados, mas há um esforço de se talhar novas narrativas a partir desse encontro e trabalhar para além dele.
“A escravidão é um tema presente no nosso acervo, apresentando-o a partir da discussão sobre as tecnologias e trabalho. Não é uma visão positivada da escravidão, porque não tem como ser, mas é uma visão mais complexificada e que olha para o sujeito que foi escravizado como um sujeito que construiu de fato o Brasil a partir da sua força de trabalho.”
Quando a escola, que é um espaço de reprodução e muitas vezes de desenvolvimento de narrativas racistas, encontra o Museu Afro Brasil, inevitavelmente acontece tensão. Rafael explica que, para lidar com ela, o educativo desenvolveu uma pedagogia do conflito:
“O núcleo de educação tem uma postura muito aberta e resiliente. Não atacamos as pessoas por uma compreensão de que o racismo é produto e é estrutural da sociedade brasileira. Por outro lado, ele [o museu] adota uma pedagogia do conflito. Para algumas coisas serem desconstruídas e desenvolvidas elas precisam ser evidenciadas de forma honesta”.
Para fazer isso, o museu tem à disposição um acervo regulatório dessas discussões, que cria, ao ser combinado com a mediação, uma outra e necessária narrativa à respeito da produção artística e cultural afro-brasileira:
“Essa segurança não é mera militância, nem atitude decorrente de uma perspectiva ideológica. O Museu Afro Brasil é embasado e subsidiado em um acervo composto por 7 mil obras. Sempre que situações de racismo acontecem, não se intervém nelas de forma discursiva. O grupo é levado até uma obra onde isso está posto, e a discussão acontece a partir da materialidade.”