A luta constante dos povos indígenas pela demarcação de terras não é uma busca por privilégios, segundo a professora e ativista Célia Xakriabá – que carrega o nome da etnia à qual pertence. Em entrevista ao G1, ela disse que o reconhecimento das terras é o cumprimento de uma “dívida histórica” com as tribos.
Segundo ela, o Brasil vive um momento de “genocídio legislado” dos povos que não têm o direito à terra assegurado. Célia também acredita que a romantização da colonização nas escolas apaga a força das mulheres indígenas e negras, e constrói uma mentalidade que enxerga os índios como “povo morto, do passado”.
A ativista participa de um debate sobre esses assuntos nesta terça-feira (27) na Universidade de Brasília (UnB). O evento vai das 11h às 14h no anfiteatro 9, no ICC Sul. Ao G1, ela adiantou alguns temas que podem surgir durante o bate-papo (leia entrevista abaixo).
O debate faz parte do Diálogos Contemporâneos, evento que ocorre até 12 de junho em Brasília e em Campo Grande, e levanta questões de relevância nacional – lutas indígenas, protagonismo feminino, mundo digitalizado, diversidades cultural e de gênero, patrimonialismo, religião e cultura do consumo.
Entre os nomes convidados para participar estão a filósofa Djamila Ribeiro, o escritor Jessé Souza, a antropóloga Mirian Goldenberg e o escritor Ignácio de Loyola Brandão. Todos os debates serão transmitidos ao vivo na página do evento.
Leia entrevista de Célia Xakriabá ao G1:
G1: Quais os principais empecilhos à demarcação das terras indígenas?
Célia Xakriabá: Vivemos um momento negativo de retrocesso. Considero este retrocesso como um amputamento de diretos. Esse tem sido o principal desafio para garantir a conclusão das demarcações dos territórios indígenas.
Outro desafio é garantir os direitos que já tínhamos conquistados, conforme prevê a Constituição de 1988. O território indígena sempre foi uma grande preocupação. A não demarcação coloca sob constante ameaça a relação do nosso povo com a terra e o modo de viver, com respeito e sustentabilidade.
A significativa invasão dos nossos territórios resulta na diminuição dos recursos naturais.
É necessário manter a relação com o sagrado e isso passa necessariamente pelo território. A tese do marco temporal e o Projeto de Emenda Constitucional 215representam forte ameaça de morte ao nosso direito territorial.
Esta morte é pior do que quando executam uma liderança indígena. Quando negam, retiram nosso direito ao território, nos matam coletivamente. Se olharmos para esse atual cenário, observamos que estamos vivendo um genocídio legislado.
G1: Os brasileiros têm consciência da importância dos povos indígenas para a história, a cultura e memória do país?
Célia: O preconceito é uma ferida aberta que ainda não foi curada.
Posso dizer que, em grande parte, a sociedade brasileira não dá a devida importância, não leva tão a sério a cultura, memória e história dos nossos povos indígenas, talvez porque não os vê como um povo do presente.
Muitos falam dos povos indígenas como se fosse um povo morto, do passado.
Muitas vezes, quando nós, indígenas, expressamos nossa cultura e identidade com altivez, temos que escutar: “vocês são índios, mas índios mesmo, índios de verdade?”. Cada pessoa que faz estas perguntas, tão agressivas, é uma tentativa de deslegitimar nossa identidade, pois não sabem o quanto o processo histórico de invasão nos deixou cicatrizes.
A história que não é contada vai sendo diluída.
Tratando da nossa cultura, o que vemos é que, quando os nossos elementos são usados por não indígenas, eles são vistos como bonitos e exóticos.
Mas, no momento em que um de nós resolve exigir o direito de falar nossa língua, de praticar rituais, danças ou costumes da nossa tradição, de pintar corpo e o rosto, usar vestimentas que carregam simbologia sagrada, muitas vezes, somos discriminados.
Temos que aguentar piadinhas estereotipadas. Temos de aguentar críticas, como: “lugar de índio é no mato, é na aldeia” ou “índio com celular e viajando de avião?”. Não é vitimismo, o preconceito que sofremos é real, muitas vezes somos motivo de gracinha.
G1: O que ainda é preciso conquistar para que as pautas indígenas avancem?
Célia: Precisam nos levar mais a sério, nos escutar e parar de nos exterminar.
O estado brasileiro precisa tomar consciência de que, quando estamos lutando pela garantia de nossos direitos, isso não deve ser interpretado como privilégios e, sim, uma dívida histórica.
Quando reivindicamos nosso território, não estamos pedindo um presente. Queremos de volta algo que sempre foi nosso, mas que foi tirado de nós.
Quando aparecemos nas estastísticas do IBGE como menos de 1% da população brasileira, esta é a dívida histórica de um dos maiores genocídio dos povos indígenas. Quando colocamos em pauta leis que garantam saúde e educação diferenciadas, é porque nos preocupamos com uma política que seja do jeito que a gente quer, sem matar o que a gente é.
G1: O cenário atual em relação à demarcação das terras diz o quê sobre o momento político pelo qual o país passa?
Célia: Acompanhamos com preocupação a realidade vivenciada pelos jovens Xakriabá.
Nos últimos anos, observamos um grande índice de suicídio e a constante migração para outras regiões do país em busca de melhores condições de vida. Muitos desses jovens se tornam escravos nas usinas.
Esta situação interrompe um ciclo entre as nossas comunidades e a nossa relação com a terra – cultura milenar que sempre garantiu harmonia, sustentabilidade e equilíbrio entre os povos indígenas.
Percebemos a necessidade de compreender com mais clareza as investidas e armadilhas causadas pelas constantes mudanças conjunturais na política brasileira, o que tem colocado em risco nossos direitos e nossa autonomia.
Assistimos estarrecidos à eminência do retrocesso nos direitos indígenas, com a ameaça de se transferir para o poder legislativo a competência para fazer as demarcações dos territórios indígenas, nos colocando à mercê dos interesses da bancada ruralista.
G1: Houve um momento político do país em que as pautas indígenas foram mais atendidas?
Célia: Tivemos momentos oscilantes na conjuntura política.
A verdade é que só teve um momento na história do Brasil que tivemos um representante indígena no Congresso Nacional [o xavante Mário Juruna (PDT) foi deputado de 1983 e 1987, eleito pelo Rio de Janeiro]. Por mais que alguns representantes sejam mais sensíveis à nossa causa e pensem políticas públicas para atender nosso povo, não basta, não é suficiente.
Temos que garantir a presença indígena no parlamento.
Se fomos perguntar de “que cor é o Brasil?”, a resposta é que o Brasil não é apenas verde e amarelo. Ele é negro, é marrom cor de terra, é multicolorido, mas também é vermelho, porque nossas terras foram lavadas com sangue indígena e negro. E, a cada processo de luta territorial, este vermelho ainda jorra.
Povos Xakriabá
Os povos xakriabá habitam as margens do rio São Francisco no município de São João das Missões, ao norte de Minas Gerais. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), atualmente existem 8.867 índios da etnia.
As terras xakriabá foram homologadas pela primeria vez em 1987 e, pela segunda vez, em 2003 – quando foi reconhecida a ampliação do território. No período pré-colonial, estes indígenas não tinham território e chegaram a ocupar regiões no vale do Tocantins e em Goiás.
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