Não existe na biblioteconomia qualquer referência aos critérios adotados pela Fundação Cultural Palmares para desbastar o acervo da sua biblioteca

14/06/2021

Fonte:https://biblioo.info/nao-existe-na-biblioteconomia-qualquer-referencia-aos-criterios-adotados-pela-fundacao-palmares-para-desbastar-o-acervo-da-sua-biblioteca/?fbclid=IwAR28fHseX_dC6p-hFKB6xN6pOewwfpeuTiY7YB7YcBrymZXjqMzSqGWqbqQ

A professora de História do Livro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Ana Virgínia Pinheiro, publicou um parecer em que critica os critérios de seleção apontados pela Fundação Cultural Palmares (FCP) que justifique o desbaste realizado no acervo da sua biblioteca

Não consta na literatura científica da biblioteconomia, que é a área de conhecimento no âmbito da documentação, associada às ciências da informação, reconhecida por lei e cuja competência de formação é atribuída a Instituições de Ensino Superior, qualquer referência aos critérios de seleção apontados pela Fundação Cultural Palmares (FCP) que justifique o desbaste realizado no acervo da sua biblioteca.

Essa é uma das conclusões de um parecer técnico assinado pela professora de História do Livro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Ana Virgínia Pinheiro. Segundo a docente, que acumula uma experiência de 38 anos como bibliotecária da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) o relatório, que foi emitido pelo Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (CNIRC), uma das unidades da estruturas administrativas finalísticas da FPC, e divulgado na sexta-feira, carece de bases técnicas e científicas.

“Políticas e critérios para formação e desenvolvimento de coleções bibliográficas devem ser alicerçados em literatura específica, técnica e especializada, baseados em princípios bibliométricos e princípios regulados por diagnósticos do estado da arte da coleção, tipologia documental predominante, estudos de uso e da comunidade a ser servida, recursos que podem ser disponibilizados por instituições parceiras, estratégias de desbaste, além da formalização de critérios como a importância do autor, a contribuição da obra, a qualidade do exemplar, o contexto cultural da edição, o índice de citações da obra em fontes bibliográficas e outros que, evidentemente, não constam do Relatório [da FCP], onde sequer foi arrolada uma bibliografia consultada”, aponta o parecer de Ana Virgínia.

Ana Virgínia, que por 16 foi chefe e curadora do setor de obras raras da Biblioteca Nacional, explica que são múltiplos os conceitos firmados e as funções atribuídas aos livros, especialmente quando se trata de selecioná-los sem critérios relevantes no âmbito da bibliografia.

“Há um exemplo consagrado num clássico da literatura universal, que a vida real insiste em repetir, no sexto capítulo de ‘Dom Quixote de la Mancha’, de Miguel Cervantes (1547-1616), publicado  originalmente em 1605, quando um padre, um barbeiro e a sobrinha do engenhoso fidalgo, para salvá-lo dos livros, decidem expurgá-los e, no processo, a eles se referem como pessoas que serão lançadas às chamas ou que, por alguma exceção opinada e por enquanto, lhes será outorgada a vida. Destacando a desqualificação dos censores, Cervantes ironiza a censura que limita o poder da imaginação”, lembra a bibliotecária.

“Há, nos dois casos, no século XVII e, agora, no século XXI, um fato em comum: livros foram selecionados com o objetivo de descarte e não de construir ou desenvolver uma biblioteca – atividade que, efetivamente, requer habilitação, qualificação e isenção, à luz dos Princípios da Liberdade Intelectual, declarados pela International Federation of Library Associations and Institutions (1999)”, lembra se referindo à Federação Internacional de Associações de Bibliotecários e Instituições (IFLA, na sigla em inglês).

Entenda o caso

Um relatório, publicado pela Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério da Cidadania, afirma que 54% do acervo da sua biblioteca é composto de publicações “alheias à [sua] missão institucional”. Parte do material foi dividido em grupos como “iconografia delinquencial”, “iconografia sexual”, “intromissão partidária”, “sexualização de crianças”, “pornografia juvenil”, “técnicas de vitimização”, “livros esdrúxulos e destoantes”, “livros eróticos, pornográficos e ‘pedagógicos’”, “livros de/e sobre Karl Marx”, “livros de/e sobre Lênin e Stalin” e “material obsoleto”.

A FCP explicou que os critérios para o levantamento temático e quantitativo do acervo foram construídos pela equipe técnica do CNIRC, “dentro de suas atribuições legais e profissionais”. São eles: 1) “Ordem Regimental”, que estariam em desacordo com a finalidade da Fundação e 2) “Ordem Legal”, que contrariariam as leis brasileiras que “vetam e condenam a formação de guerrilheiros; a sexualização de menores; a subversão do estado democrático de direito; e a pregação da violência como meio político ou de alteração da ordem social”.

O relatório, intitulado “Três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares”, assinado pelo seu presidente, Sérgio Camargo, também sugere a mudança do nome da sua biblioteca, que homenageia o escritor, intelectual e militante negro Oliveira Silveira em função da sua “mentalidade voltada para a manutenção de um gueto marxista”. Dentre as centenas de obras retiradas do acervo estão “A crise do Imperialismo, de Samir Amim (Graal, 1977); “Poemas: Rondó da Liberdade, de Carlos Marighella (Editora Brasiliense, 1994); “Homossexualidade: mitos e verdades”, de Luiz Motte (Editora Grupo Gay da Bahia, 2003) etc.

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