25/10/2020
Enfrentar o tema do legado da escravidão, no Brasil e em outros países – e as contradições e reflexos sociais, como a infeliz manifestação do atual presidente da Fundação Palmares – continua a ser prioridade da sociedade contemporânea
Incrédulos, temos presenciado várias agressões ao movimento negro por parte do atual presidente da Fundação Palmares. Ele acaba de excluir lideranças negras da lista de personalidades da fundação, como é o caso da ex-senadora e ex-ministra Marina Silva, da cantora Preta Gil, da deputada federal Benedita da Silva. Estas lideranças fazem parte da história recente do povo negro, concorde-se ou não com suas posições políticas.
O atual presidente da Fundação Palmares já havia dito que a escravidão no Brasil beneficiou os descendentes de escravos. Disse também que é contra as políticas de cotas para os negros, e contra o Dia da Consciência Negra. Chamou ainda Zumbi de “falso herói” – este Zumbi que dá nome à fundação que ele preside. No Brasil Colonial, tínhamos o capitão do mato, que caçava os escravos fugitivos. O capitão do mato era muitas vezes um negro como aqueles a quem caçava. O Brasil não tem mais a escravidão negra nem capitães do mato. Mas sempre haverá pessoas que agem de maneira triste, como o atual presidente da Fundação Palmares.
As referidas ações se contrapõem às visões e ações de tantas outras pessoas que lutam pelo fim da discriminação e pela equidade racial. É o caso das ativistas e pesquisadoras Vania Viana e Alison Moses. Na 13ª Carta de Conjuntura da USCS (disponível aqui), Vania, que é brasileira, entrevistou Moses, norte-americana. Moses tem experiência em projetos sociais e econômicos internacionais, com destaque para Estados Unidos, Caribe e Brasil. Ela falou sobre racismo e sobre as várias manifestações ocorridas nos Estados Unidos após o assassinato brutal de George Floyd, asfixiado por um policial branco.
Perguntada sobre o Black Lives Matter, Moses disse: “O Black Lives Matter, BLM, alega inspiração no movimento dos direitos civis, no movimento Black Power, no movimento feminista negro dos anos 80, no pan-africanismo, no movimento anti-apartheid, no hip hop, nos movimentos sociais LGBT e no Occupy Wall Street. Várias organizações de mídia se referiram ao BLM como “um novo movimento de direitos civis. Alguns dos manifestantes, no entanto, se distinguem ativamente da geração mais antiga de liderança negra (…). É importante ter em mente que as manifestações de hoje em dia vão além de simplesmente incorporar brancos que acreditam na ‘causa’. A consciência da sociedade é mais multiétnica, com gerações que nasceram em um mundo cuja demografia é multidimensional e multi racial. Esse novo ponto de vista é intersetorial e interseccional”.
E prossegue: “Até o site da organização BLM, por exemplo, afirma que o Black Lives Matter é ‘uma contribuição única que vai além dos assassinatos extrajudiciais de negros por policiais e vigilantes’. E que adota a interseccionalidade, que o Black Lives Matter afirma a vida dos negros queer e trans, pessoas com deficiência, negros sem documentos, pessoas com registros, mulheres e todas as negras vivem no espectro de gênero (…) A pandemia ficou no escanteio dada a dimensão do assassinato de George Floyd, que serviu de estopim nesta nova tsunami de manifestações”.
Quando questionada sobre como via a questão racial, a sua relação com os direitos humanos e com a conscientização dos próprios negros, Moses afirmou o que se segue.
“Foi no contexto de profunda inferiorização do mundo não branco que, em Paris, por volta de 1934, nasceu o Movimento de Negritude. Nos EUA, a luta pelos direitos civis dos negros tornou-se expressiva a partir da segunda metade dos anos 1950 e atingiu seu auge nos anos 1960, com líderes como Martin Luther King (…).No Brasil, o verdadeiro movimento negro começou a surgir durante o período da escravidão. Para defender-se das violências e injustiças praticadas pelos senhores, os negros escravizados se uniram para buscar formas de resistência. Ao longo dos anos, o movimento negro se fortaleceu e foi responsável por diversas conquistas desta comunidade, que por séculos foi injustiçada e cujos reflexos das políticas escravocratas ainda são visíveis na sociedade atual (…).
“Nas décadas de 1970 e 1980, surgiram vários grupos com o intuito de unir os jovens negros e denunciar o preconceito (…) A formação do Movimento Negro Unificado; a Marcha Zumbi, realizada em Brasília em 1995; o decreto do presidente FHC instituindo o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra; a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir); a ‘Lei Caó’, de 1989, tipificando o crime de racismo no Brasil; a Lei12.990/14, determinando 20% das vagas oferecidas nos concursos são destinadas aos negros.
“Ao negro brasileiro ainda falta um pilar fundamental para se unir: liderança com um único objetivo de conseguir direitos civis e humanos para o povo afrodescendente e para todos. É interessante notar que, nos Estados Unidos, apesar da voz forte em prol de direitos civis para negros, a partir da década de 1950 muitos movimentos pelos direitos civis começaram a aparecer não apenas vinculados à situação dos negros, mas também relacionados com a sexualidade e com o comportamento cultural. Esses movimentos tornaram-se amplamente expressivos a partir de 1960. Foi o caso do movimento hippie e do movimento gay (…).
“Apesar das lutas incessantes pela escolarização da população negra no Brasil, a história da educação e escolarização dos negros e negras no Brasil foi marcada por uma caminhada de desigualdades que se verifica até os dias atuais. A taxa de analfabetismo entre as pessoas pretas ou pardas (negros) é mais do que o dobro do que entre as pessoas brancas.”
Sobre a importância de lideranças negras na vida política, econômica e social, Moses enfatizou o papel e o exemplo do ex-presidente Obama, nos EUA.
“Duvido que não haja outro afro-americano na Presidência dos Estados Unidos. A família Obama representava o melhor dos negros americanos, o fino da raça, incomparável na postura e na elegância. Nós vimos em Obama um político habilidoso, um ser humano de profundos valores morais e um dos maiores presidentes da história americana. Ele era fenomenal – o maior intérprete, e o mais ágil representante da diferença de cor que eu já conheci. Tinha a capacidade de acionar uma conexão profunda e sincera com o coração dos negros, sem jamais duvidar do coração dos brancos. Isso tudo é questão de personalidade e caráter. Ele era um líder. Por que não outro líder negro feito Obama na Casa Branca? (…)
“Costumava citar a constituição americana apontando o desejo da nação “para ser uma nação mais perfeita”. Essa suposta “nação mais perfeita” está florescendo cada vez mais, embora seja de maneira paulatina e dolorosa. Vemos com o assassinato hediondo do George Floyd, dentre outros antes e até poucos dias depois, que as pessoas brancas estão refletindo mais, identificando e reconhecendo cada vez mais seus privilégios pelo simples fato de serem brancas. Em uma sociedade racista não é uma tarefa fácil.
“Esse começo talvez seja mais um sinal do branco aceitar a realidade de negros competentes e muito bem instruídos como o ex-presidente Obama para a ascensão à Presidência no futuro. À luz da história e experiência americana, um ou uma presidente negro sempre haveria de ser uma contradição para um governo que, ao longo da maior parte de sua história, sempre foi marcado pela opressão aos negros. No entanto, um homem negro ou uma mulher negra na Casa Branca não é fora de cogitação no século 21, já que o americano viveu o primeiro capítulo intitulado ‘Grande Obama’.”
Portanto, enfrentar o tema do legado da escravidão, no Brasil e em outros países – marcados pelo longo período de sua vigência na história e que vivem ainda as contradições e os reflexos econômicos, sociais e políticos, como a infeliz manifestação do próprio atual presidente da Fundação Palmares – continua a ser uma das prioridades da sociedade contemporânea.
Jefferson José da Conceição é professor doutor em Economia e Coordenador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).