04/12/2022
1. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada pela Lei n. 12.528/2011, para apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de
outubro de 1988, dentro do processo de consolidação do Estado Democrático de Direito após um regime ditatorial. Como assinala a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), toda a sociedade tem o “direito irrenunciável de conhecer a verdade sobre os fatos ocorridos, assim como as razões e circunstâncias em que os delitos foram
cometidos, de forma que se possa evitar que esses fatos voltem a ocorrer no futuro”.1 A revelação de graves violações de direitos humanos no âmbito “de um relatório
oficialmente aprovado, dará ao povo […] a possibilidade de refletir sobre elas, preparar respostas coerentes e adotar medidas que possam garantir a paz no futuro”, reforça a
CIDH.2
2. No relatório final3 dos trabalhos desenvolvidos pela CNV, o Texto 5, do Volume II, trata das “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”. Na oportunidade, a CNV
concluiu que os “povos indígenas no Brasil sofreram graves violações de seus direitos humanos no período entre 1946 e 1988” e que se tratou de violações “sistêmicas, na
medida em que resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões.”
3. A CNV estimou que, ao menos, 8.350 indígenas foram mortos no período investigado, mas que essa, provavelmente, é apenas uma pequena parcela das violações de direitos
perpetradas. “O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas.”
4. O relatório final da CNV trouxe uma série de recomendações para que o Estado brasileiro busque uma resposta integrada, em termos de verdade, justiça, reparação e
garantias de não repetição, para lidar com o cenário de graves violações de direitos humanos vivenciado no país.
5. No que se refere aos povos indígenas, recomendou que o Estado brasileiro, além de assumir a responsabilidade pelo esbulho de terras indígenas e outras graves violações de
direitos humanos ocorridas durante o período da ditadura militar, institua uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas. O trabalho dessa comissão deve ser o marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos pelo histórico de violações a seus direitos. Recomendação de teor similar foi formulada pela Comissão Estadual da Verdade em Minas Gerais (Covemg).
6. O Ministério Público Federal (MPF) realizou, no dia 27 de outubro, uma audiência pública, em Belo Horizonte/MG, com o objetivo de recolher informações para a
implementação dessas recomendações, especialmente sobre aquela pertinente à criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). Participaram do evento,
presencialmente ou via plataforma virtual, indígenas de diversas etnias e regiões do país, bem como representantes da sociedade civil. Durante as mais de seis horas de trabalho, os participantes deram testemunho sobre violações perpetradas contra os povos indígenas durante a ditadura militar, ressaltaram a importância da criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade e contribuíram com sugestões sobre os objetivos, a metodologia e a forma de composição da comissão objeto das aludidas recomendações da CNV e da Covemg.4
7. Os debates voltados à criação da CNIV se ampliaram desde então, a partir da participação central de representantes dos povos indígenas, a que se somou o interesse de
parlamentares, da academia e de diversos setores da sociedade civil.
8. A confirmação da criação do Ministério dos Povos Originários, pelo governo federal que tomará posse em 1º de janeiro de 2023, traz a oportunidade para o aprofundamento
da proposta e da incorporação da instituição de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade no plano de ação da nova gestão. Destaca-se, em especial, o agravamento, nos
últimos quatro anos, da situação de violações aos direitos dos povos indígenas, por ação do Estado e de agentes privados, diante da leniência governamental. Esse contexto recente de ataques aos povos indígenas é indissociável do histórico de atentados aos direitos das populações originárias ocorridos durante a ditadura militar. Seguramente, o reforço de um processo de justiça de transição amplo e consistente no país é o caminho para garantir o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e a não-repetição de graves violações de direitos humanos, inclusive em relação aos povos indígenas.
9. Assim, o Ministério Público Federal reforça a necessidade de instituição de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade no plano inicial de atuação do Ministério dos
Povos Originários, definindo-se – em processo que deve se dar com a participação e o protagonismo dos povos indígenas em nosso país, de acordo com o paradigma
emancipatório estabelecido pela Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – os objetivos específicos da CNIV e a extensão do mandato que receberá
(especialmente o período histórico que será objeto de investigação), o modo de composição, os poderes de tal Comissão e seu tempo de atuação.
10. É preciso que haja amplo e público conhecimento das violações de direitos perpetradas contra os povos indígenas no Brasil, e sob quais condições sociais, políticas e econômicas tais violações aconteceram, de forma a se construir políticas reparatórias e reformas institucionais aptas a garantir os direitos dos povos originários no país. O trabalho da CNIV há de ser essencial para a construção dos alicerces do processo de efetivação dos direitos dos povos indígenas no país e das reparações a que fazem jus, incluindo o reconhecimento de seus territórios. Finalmente, a proposta tem o potencial de orientar a redefinição da estratégia pedagógica necessária para fazer com que o restante da sociedade brasileira compreenda a multiculturalidade da população brasileira e a necessidade de permanente respeito aos direitos de todos.
Belo Horizonte e São Paulo, 04 de dezembro de 2022.
Edmundo Antonio Dias N. Jr.
Procurador da República
Marlon Alberto Weichert
Procurador Regional da República
1 CIDH. Derecho a la Verdad en las Américas. Párr. 71. Citando: CIDH, Informe Anual de la Comisión Interamericana de
Derechos Humanos 1985-1986, OEA/Ser.L/V/II.68, Doc. 8 rev. 1, 26 septiembre 1986, Capítulo V.
2 CIDH. Derecho a la Verdad en las Américas. OEA/Ser.L/V/II.152. Doc. 2. 13 agosto 2014.Párr. 129. Citando: CIDH, Informe
Anual de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos 1996, OEA/Ser.L/V/II.95, Doc. 7 rev., 14 marzo 1997, Cap. V,
Guatemala, párr. 28.
3 Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571. Acesso em
02/12/2022.
4 O conteúdo da audiência pública, realizada no âmbito do presente inquérito civil n º 1.22.000.001819/2022-95, pode ser
consultado no seguinte link: <https://www.youtube.com/watch?v=CVAB7a8HPhQ>.
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