20/09/2023
A exploração de lítio no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais está sendo alardeada, pela propaganda das empresas e do governo, como a redenção para o “vale da Miséria”, que iria se transformar no “vale do Lítio”. As jazidas já eram conhecidas, mas o impulso para a exploração veio com a pressão internacional contra o aquecimento global, que exige a substituição da frota a combustão por veículos elétricos. O lítio, como se sabe, é fundamental para a fabricação das baterias que acumulam energia para esses carros. Desde já, é bom saber que os carros elétricos serão apenas para os ricos, como já alertou o presidente mundial da Renault.
Antes que fiquemos extasiados com o vislumbre de riqueza e desenvolvimento para dez municípios do Jequitinhonha, porém, cabem alguns alertas e esclarecimentos. Em primeiro lugar, mineração significa abrir crateras enormes na paisagem, usar explosivos que sobressaltam as pessoas e criam nuvens de poeira sobre as cidades, e também diminuir a vazão dos rios Jequitinhonha e Araçuaí. Para produzir os 12,5 quilos de lítio que vão dentro de uma única bateria, são necessárias 500 toneladas de minério. Para refiná-lo é preciso usar algo muito pouco ecológico, que é o ácido sulfúrico. Por isso é hipocrisia chamá-lo de lítio verde. O lítio é cinzento, e dessa cor podem ficar nossas cidades.
Querer atribuir ao “Vale do Lítio” os méritos do Vale do Silício californiano não é apenas hipocrisia, mas o mais refinado cinismo. Ninguém jamais cogitou de instalar em nossa região alguma empresa de tecnologia, como as que mudaram o mundo a partir das geniais invenções de Bill Gates e Steve Jobs. De todas as empresas que se candidatam a esburacar o Jequitinhonha para retirar o lítio, apenas uma é de capital nacional, a Sigma Lithium, instalada em Araçuaí. E também é a única que se propõe a beneficiar o produto e não deixar as montanhas de resíduos, que seriam vendidos para a China. A extração dá 90% de lucro. O beneficiamento dá apenas 20%. Essa matemática já explica em qual atividade se concentrará o interesse do capital.
Historicamente, as minerações significam apenas prosperidade temporária e problemas permanentes. Pagam um imposto irrisório ao poder público enquanto durar a jazida, financiam algumas obras sociais e bandinhas de música. Os empregos bem remunerados sempre são para gente de fora, e o lucro é sempre remetido para o exterior. Foi assim desde 1696, quando descobriram ouro em Ouro Preto. As pepitas encontradas no leito dos rios fizeram a riqueza dos espertos. Quando foi preciso escavar nas montanhas, venderam as jazidas para os ingleses. A mina de Morro Velho, em Nova Lima, enriqueceu inúmeras gerações de acionistas na Inglaterra durante duzentos anos, à custa da vida e da saúde de milhares de escravos e operários livres.
Depois do ciclo do ouro e do diamante, chegou a vez do ciclo do ferro. A criação da Cia. Vale do Rio Doce foi uma rara ousadia nacionalista no país do entreguismo. Durante muitas décadas a Vale cuidou de Itabira e das outras cidades onde extraía minério com uma atitude de responsabilidade social que apenas as empresas estatais demonstram. Depois que foi privatizada, esses cuidados cessaram. A exploração foi acelerada, os salários foram achatados e a empresa, ao se tornar a segunda maior mineradora do mundo, pagava a seus operários apenas 2% do seu faturamento. E os basbaques tupiniquins ficavam aplaudindo como focas amestradas a lucratividade da empresa no cenário do capitalismo mundial.
Assim também aconteceu com a indústria siderúrgica nacional, criada com investimentos públicos e parcerias com o capital estrangeiro para transformar o Brasil numa potência siderúrgica mundial. A primeira foi a Belgo Mineira, em João Monlevade, fundada em 1921. No governo Getúlio Vargas foram fundadas a Cia. Siderúrgica Nacional (CSN), em 1941, em Volta Redonda, e a Acesita, em Timóteo, no ano de 1944. Novo impulso recebeu Minas Gerais, em 1952, com a Mannesmann em Contagem, e com a Usiminas, em 1962, localizada no Vale do Aço. Depois de Juscelino Kubitschek nunca mais surgiram governantes com visão desenvolvimentista e voltou ao poder a mentalidade entreguista dos vendilhões do patrimônio público.
Depois que o presidente Fernando Henrique Cardoso entregou a CSN ao empresário quase falido Benjamin Steinbruch, e depois a Vale do Rio Doce em 1997 a um consórcio cheio de especuladores internacionais, nossa siderurgia foi se tornando cada vez menos competitiva e foi mudando de dono e de políticas ao sabor dos interesses internacionais até chegarmos ao ponto de vender minério para a China e comprar, para a ferrovia Norte-Sul, trilhos prontos dos chineses. O Brasil sempre teve capacidade de produzir trilhos. É inadmissível comprar no exterior algo tão básico da indústria siderúrgica.
Esta é a sina de Minas Gerais: vender, vender, vender minério, até que fiquemos apenas com os buracos e com as sepulturas de quem foi soterrado pelas barragens. Apesar dos séculos de experiência, essa entrega de nossas riquezas minerais não está sendo diferente no caso atual do Jequitinhonha. Ninguém fala em criar institutos de tecnologia para desenvolver baterias com capital, inteligência e mão de obra nacional. O caipira do Triângulo Mineiro, que atualmente governa Mina Gerais, deveria ter vergonha de dar concessão a empresas estrangeiras para explorar o nosso lítio sem exigir que pelo menos uma parte dele seja transformada em produto final, na própria região, com a fabricação de baterias para mover os carros nacionais.
@ Márcio Metzker é jornalista e escritor e vive em Belo Horizonte (Minas Gerais)