09/12/2020
“No Brasil, não existe racismo!”, afirmou o vice-presidente da República diante do assassinato de um homem negro, em um supermercado na cidade de Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra.
Duas semanas depois, no dia 05 de dezembro de 2020, duas meninas negras foram mortas, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, por uma “bala perdida”. Aquele tipo de bala que só acha os corpos negros para perfurar e explodir, e, também, do mesmo tipo que sempre encontra corpos negros quando acontece uma batida policial nos bairros periféricos, vilas e favelas.
Alguém já leu alguma notícia sobre duas crianças brancas de classe média que tenham sido atingidas por uma bala perdida enquanto brincavam na piscina de um condomínio de luxo?
As crianças negras padecem de invisibilidade social e política. No dia 13 de julho de 2020, foram comemorados os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu Art. 7º, assegura que a criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Apesar da sua importância, o documento, baseado em direitos universais, deixa de reconhecer o racismo que estrutura e organiza a sociedade brasileira e que tem reservado a miséria, as desigualdades e a falta de proteção às crianças negras, como também tem lhes negado a segurança por parte do Estado, da instituição que deveria garantir suas vidas e direitos.
No Brasil, a pobreza e a negligência em relação aos direitos das crianças e dos adolescentes pobres têm cor. O índice de privação de direitos, em relação a meninas e meninos negros é de 58,3%; quando nos referimos às crianças e aos adolescentes brancos, este índice cai para 40%. As crianças e adolescentes negros, também, são os que mais vivem em condições de privações extremas de direito, que é duas vezes maior do que entre brancos. Ou seja, em estado de miséria absoluto e sem direito à educação, à saúde, à alimentação e à moradia digna. Além disso, muitas vezes, as crianças negras têm sido privadas do direito à vida.
De acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 18 de outubro de 2020, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Brasil, quando comparado a outros países, é o que mais mata crianças. Em 2019, segundo dados do Anuário, foram quase 5 mil crianças e adolescentes mortos de forma violenta e intencional e quase 26 mil que sofreram estupro. Chama a atenção quando os dados são desagregados por cor/raça: do total das quase 5 mil crianças e adolescentes, 75% que representavam os negros de 0 a 19 anos (o anuário segue o limite de idade recomendado pela Organização Mundial de Saúde), foram vítimas de mortes violentas intencionais. Em todas as faixas etárias, o número de vítimas negras é maior que o número de vítimas brancas.
A principal causa, são os crimes de homicídio e a lesão corporal, seguida de morte. Os dados analisados confirmam que, em média, morrem mais de 13 crianças e adolescentes de forma violenta por dia no Brasil, ou seja, uma geração inteira de crianças e adolescentes, em sua maioria negros, sendo perdidas de forma brutal, mortas pelo Estado brasileiro, por aquele que deveria assegurar o que estabelece a Constituição brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, primeiramente, direito à vida e, também, direito à educação, à saúde, à alimentação e a moradia digna.
A única análise possível de ser considerada quando o assunto é a vida da população negra, em geral, e a vida de crianças e adolescentes negros, em particular, é a existência do racismo estrutural incrustrado na sociedade e no Estado: o racismo tem sido um cruel determinante de mortes de pessoas negras brasileiras. É esse fenômeno perverso que assegura que as ditas “balas perdidas” encontrem o perfil exato para aniquilar. As “justificativas” apresentadas pelas autoridades públicas é de que foi “o acaso”, em função da guerra “contra o tráfico”. Não!!! É uma guerra que tem endereço certo contra um segmento da população que vive historicamente várias tentativas de extermínio, ou seja, as pessoas negras. A morte para elas tem sido com mais crueldade e tem chegado a cada vez mais cedo. Nossas crianças e adolescentes negros estão sem proteção. Não existe mais quem consiga protegê-las: nem o cuidado da família, nem a casa, nem a escola as protegem mais.
Não é possível mais falar sobre democracia, criança, infância e direitos, enquanto não chorarmos e nos indignarmos pelo assassinato de crianças como Jenifer Gomes, Kavan Peixoto, Kauã Rosário Gomes, Kauê dos Santos e, mais recentemente, Ana Carolina de Souza Neves, primeira criança morta vítima de bala perdida no Rio de Janeiro em 2020, Ágatha Félix, Maria Alice de Freitas, Ítalo Augusto, Rayane Lopes e das vítimas infantis recentes: Emilly Victoria, de 4 anos, foi baleada na cabeça e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, de 7 anos, levou um tiro no abdômen. Todas crianças negras e mortas pelo Estado e sua necropolítica! É preciso que os casos sejam apurados, de fato, e os responsáveis, sejam exemplarmente punidos. E necessário que parem de matar as pessoas negras, sejam elas adultas ou crianças e adolescentes.
As crianças negras são consideradas fora do padrão que privilegia uma concepção universal de infância. Por isso, a sua morte violenta não choca, não causa indignação social e política! Como bem diz a filósofa Judith Butler, é necessário recuperar a capacidade HUMANA, de não apenas não “deixar morrer”, mas, de se indignar pela morte do outro, entrar em luto por aqueles que não conhecemos, por aqueles que não têm os nomes nas mídias. Um luto coletivo, político, que reconhece que todas as vidas são viáveis e importantes, por isso, devem ser choradas, igualmente.
É necessário chorar e se indignar pelas crianças que tiveram suas vidas ceifadas pelo racismo e pela insegurança pública. Choramos e nos indignamos por todas elas. Um choro político que mistura dor, indignação, denúncia e resistência.
Certamente, a quantidade de crianças vítimas de homicídios, em especial, as negras, é muito maior do que os dados estatísticos revelam. Falta transparência de informação por parte de vários estados e municípios, o que impede a análise do panorama nacional. É dever do Estado decretar que todas as Secretarias de Segurança Pública coletem dados, por faixa-etária, cor/raça e gênero. Essa será uma forma de tornar visível a forma perversa como a infância e à adolescência negra tem sido tratada.
Pela memória das crianças e adolescentes negros assassinados pela insegurança pública que assola a vida das brasileiras e dos brasileiros, fruto do racismo estrutural, dizemos não ao racismo.
Nilma Lino Gomes é doutora em Antropologia Social e Pós-Doutora em Sociologia e Educação. Docente da Pós-Graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social -FAE/UFMG. Coordenadora do NAPP de Igualdade Racial da Fundação Perseu Abramo.
Cristina Teodoro é doutora em Educação: Psicologia da Educação, pela PUC/SP. Professora Adjunta Efetiva da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) – Campus dos Malês/BA. Integrante do NAPP de Igualdade Racial da Fundação Perseu Abramo.