27/09/2021
Investigação em curso aponta que procedimento em desacordo com recomendações internacionais teria sido decisivo para ruptura da barragem
Segundo aponta um laudo sigiloso de engenharia produzido por peritos técnicos da Polícia Federal (PF) obtido pela Agência Pública, um procedimento definido pela mineradora Vale e pela consultoria alemã Tüv Süd em desacordo com regulamentos técnicos internacionais consagrados teria sido decisivo para o desfecho da tragédia de Brumadinho (MG) ocorrida em janeiro de 2019.
Além disso, uma terceira empresa é implicada nos acontecimentos: a multinacional holandesa Fugro. Com 253 páginas e mais três apêndices, o documento integra inquérito ainda em andamento que apura responsabilidades pelo rompimento da barragem I da Mina Córrego do Feijão da Vale.
Para elucidar o episódio que ceifou 270 vidas e causou impactos ambientais e socioeconômicos em diversas cidades mineiras, foram realizadas diferentes investigações. Um inquérito já foi concluído pela Polícia Civil e apurações foram realizadas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e pelo Ministério Público Federal (MPF).
Houve ainda Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) no Senado, na Câmara dos Deputados e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. A própria Vale também contratou auditores externos.
Em todas as frentes de investigação, tornou-se consenso que a ruptura abrupta foi resultado do processo de liquefação, em que parte do rejeito depositado passa a se comportar como um fluido denso e faz crescer a pressão sobre a estrutura.
No entanto, esse fenômeno pode ser desencadeado por variados fatores como chuvas intensas, excesso de carga depositada num intervalo curto, abalos sísmicos, problemas no sistema de drenagem, e etc. Diferentes explicações já foram levantadas no caso da tragédia de Brumadinho.
O inquérito da PF é o único procedimento investigativo ainda inconcluso. O laudo de engenharia buscou exatamente identificar o gatilho da liquefação e analisou seis hipóteses.
Os peritos concluíram que o fator que desencadeou a liquefação foi uma perfuração geotécnica cujo objetivo era coletar amostras de solo e instalar piezômetros multiníveis, instrumentos que medem a pressão da água presente nos poros do solo. O procedimento, que teve o aval da consultoria Tüv Süd, foi realizado pela empresa Fugro, contratada pela Vale. Segundo o relatório, todas às três companhias não consideraram regulamentos técnicos internacionais.
“A empresa Vale S.A. e a sua consultora Tüv Süd haviam sido alertadas quanto aos riscos de executar perfurações com utilização de água, em uma estrutura tal como a barragem I.
De fato, normas e regulamentos internacionais relatam sobre o potencial de causar danos por esse método, estabelecendo diversas restrições e recomendações. Esses cuidados não foram tomados pela Vale S.A., pela sua consultora Tüv Süd, ou pela responsável pela execução do serviço, a empresa Fugro, em um procedimento pouco cuidadoso na definição da técnica e do equipamento utilizado”, diz o laudo.
Ainda conforme o laudo, a Fugro foi contratada para fazer o serviço pelo valor de R$1,13 milhão. Os trabalhos na parte considerada mais crítica se iniciaram quatro dias antes do rompimento. No dia 25 de janeiro de 2019, foi atingida a marca aproximada de 68 metros de profundidade. Pactuado pela Vale, Tüv Süd e Fugro, o procedimento adotado envolveu a circulação de água para resfriamento da coroa de perfuração. Segundo os peritos, essa opção gerou um acréscimo de carga hidrostática.
“Essa sobrepressão foi capaz de atuar como gatilho do processo de liquefação. Embora a execução de sondagens seja um serviço comumente executado em barragens de mineração, a perícia esclarece que a barragem I estava em condição marginal de estabilidade, fato que era conhecido pela Vale S.A. e pela empresa Tüv Süd, contratada como consultora e também como auditora externa”, acrescenta o laudo.
Os documentos internacionais de referência citados pelos peritos são o guia Diretrizes para Perfuração e Amostragem em Barragens de Aterro, do U.S. Department of the Interior Bureau of Reclamation (USBR), e o Regulamento nº 1110-1-180712, do U.S. Army Corps of Engineers (USACE).
Ambos trazem recomendações técnicas que têm por fundamentação o histórico de incidentes de ruptura hidráulica decorrentes da utilização de fluidos durante a execução das perfurações. A orientação é para que este tipo de serviço seja realizado a seco em estruturas como a de Brumadinho.
Para os peritos, embora os normativos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) não tratem desse tema, a Vale, a Tüv Süd e a Fugro deveriam ter considerado as melhores práticas de engenharia consagradas internacionalmente.
“As características conhecidas e desfavoráveis da barragem I, assim como os altos danos potenciais associados, implicam, no entendimento pericial, que havia necessidade técnica de se observar as recomendações”.
Os documentos do inquérito indicam que cabia à Tüv Süd mediar o contato entre a empresa contratada para o serviço e a Vale. A Fugro teria aceitado conduzir o procedimento após a negativa de outra empresa.
Procurada inicialmente, a Alphageos declinou o serviço por discordar da não utilização de um equipamento hollow-stem auger. Em e-mail encaminhado ao engenheiro Makoto Namba, da Tüv Süd, um funcionário da Alphageos cita as recomendações internacionais para justificar a posição. A troca de mensagens é do início de setembro de 2018.
“Prezado Makoto, conforme contato telefônico, para a execução das perfurações previstas, o equipamento ideal seria os CME-550X, que são equipamentos com condições de torque capaz de perfurar com o hollow auger todo o trecho previsto da barragem. De acordo com o projeto, as instalações seriam em aproximadamente 50m de profundidade.
A execução da perfuração com utilização de fluido representa um risco muito grande para a integridade da barragem. Segue, em anexo, as diretrizes para perfuração e amostragem em barragens de aterro, elaborado pelo U.S. Department of the Interior Bureau of Reclamation Technical Service Center Denver, Colorado. Conforme se pode observar nestas diretrizes, a utilização do sistema de hollow auger é a primeira recomendação para este tipo de atividade”.
O laudo também inclui mensagens trocadas entre Makoto Namba e funcionários da Vale, que foram informados da posição da Alphageos. Vem da equipe da mineradora o veto ao equipamento CME-550X. O argumento utilizado é de que ele estaria em desconformidade com os normativos internos de segurança, saúde e meio ambiente da Vale.
“Essas sondas tinham dúvidas e não foram aprovadas”, escreveu uma funcionária. Makoto terminou por informar que substituiria a empresa, mas antes chegou a esclarecer que o equipamento proposto pela Alphageos já havia sido usado em outras barragens da Vale. “Não necessariamente se foi utilizada em outras áreas poderá ser utilizada aqui”, respondeu a funcionária da mineradora.
Procurada pela reportagem, a mineradora afirmou em nota que colabora desde o início com as investigações da Polícia Federal. “A empresa aguarda a conclusão do inquérito para a devida manifestação por intermédio de seu advogado.
A Vale informa, ainda, que compreende que as autoridades que presidem investigações são livres na formação de suas próprias convicções. No entanto, reafirma que norteou sempre suas atividades por premissas de segurança e que nunca se evidenciou nenhum cenário que indicasse risco iminente de ruptura da estrutura B1”, diz o texto.
A Tüv Süd se limitou a informar que “não poderá fornecer informações sobre o caso neste momento, por conta dos processos legais e oficiais ainda em curso”. A Fugro afirmou que “está colaborando com os trabalhos de investigação e reserva-se o direito de se pronunciar sobre os fatos somente nos autos do inquérito policial”.
Embora o procedimento conduzido pela Fugro seja apontado como gatilho, os peritos registram que a situação da barragem já não era boa. A avaliação é de que, se as condições de estabilidade fossem aceitáveis, a perfuração não teria sido suficiente para provocar o rompimento. O laudo aponta ocasiões em que o comportamento da Vale e da Tüv Süd cooperam para o desfecho final.
Houve pelo menos dois momentos em que uma ação poderia interromper a cadeia de acontecimentos que levou ao rompimento. Um deles envolve a assinatura da declaração de estabilidade da barragem.
Esse documento obrigatório, a ser emitido por uma empresa de consultoria externa, deve ser renovado duas vezes ao ano — em março e em setembro — e protocolado na Agência Nacional de Mineração (ANM). Sem ele, as operações na estrutura devem ser paralisadas.
Os peritos da PF reiteraram que a Tüv Süd assinou a declaração de estabilidade mesmo tendo apurado valores de fatores de segurança incompatíveis com as boas práticas de engenharias e inaceitáveis conforme os critérios preconizados nas normas técnicas brasileiras.
O laudo aponta ainda que os valores de probabilidade de falha na barragem eram 20 vezes superiores ao limite aceitável conforme os parâmetros adotados internacionalmente.
Ainda segundo os peritos da PF, o outro momento que poderia ter impedido o desdobramento dos fatos até o episódio fatal se deu em 11 de junho de 2018, quando houve uma ruptura hidráulica que mobilizou as atenções da Vale.
O problema ocorreu durante a implantação do 15º de um total de 29 drenos horizontais profundos, intervenção que buscava reduzir o nível do lençol freático e assim aumentar o fator de segurança da estrutura.
Segundo os peritos, era um evento adverso que deveria ter levado ao acionamento do nível de emergência 1 da barragem. Caso a Vale tivesse adotado essa postura, os órgãos de controle poderiam ter tomado conhecimento da situação crítica da estrutura e a interditado, fazendo com que vidas fossem poupadas.
Conforme a classificação estabelecida pela ANM, existem três níveis de emergência e o primeiro deles já demanda a interdição da barragem. No segundo e no terceiro níveis, é obrigatória a evacuação da área que seria atingida pela onda de rejeitos em caso de rompimento.
O laudo da PF aponta ainda que as sirenes aparentemente não estavam operacionais. “Em simulados realizados em 10/06/2018, por exemplo, teriam sido utilizadas buzinas a gás e cornetas como forma de acionamento do alerta. Além disso, não existia um sistema que permitisse um acionamento automático das sirenes de alerta”, registra o laudo.
A observação coloca mais dúvidas sobre um fato ainda pouco esclarecido. Após a tragédia, a Vale chegou a dar diferentes versões para o motivo pelo qual os alarmes não soaram. Primeiro sustentou que o sistema de alerta sonoro foi engolido pela onda de rejeitos. Depois passou a dizer apenas que não houve tempo hábil para acionamento diante da velocidade dos acontecimentos.
A ruptura ocorreu às 12h28, coincidindo com o intervalo de almoço. A maior parte das vítimas estava no interior ou nos arredores do refeitório, distante apenas 150 metros da portaria, local de segurança mais próximo.
Ainda que o alarme tivesse soado, os peritos sinalizam que não haveria tempo hábil para uma fuga organizada da maioria dos funcionários já que as instalações administrativas, incluindo o refeitório, ficavam logo abaixo da barragem. Elas foram atingidas em cerca de 1 minuto. A perícia da PF também apontou que, apesar de ciente dos riscos na estrutura, a Vale não adotou medidas para mudar a posição das instalações administrativas e operacionais.
O inquérito da PF ainda não tem data para ser concluído. Ele foi desmembrado em duas partes. Em setembro de 2019, 13 pessoas foram indiciadas por falsidade ideológica e uso de documentos falsos: sete eram funcionários da Vale e seis da Tüv Süd. Segundo a PF, relatórios de revisão periódica e de inspeção de segurança e a declaração de estabilidade da barragem foram fruto de fraude, pois foram ignorados deliberadamente parâmetros normativos.
A apuração de crimes ambientais e contra a vida tiveram sequência na segunda parte das investigações. O laudo de engenharia era considerado pela PF como peça fundamental e necessária para definir se alguém deve ser indiciado por homicídio. Informações superficiais do documento chegaram a ser apresentadas durante uma coletiva de imprensa em fevereiro deste ano, mas a íntegra foi mantida em sigilo, uma vez que o inquérito ainda está em andamento.
Um processo criminal, no entanto, já tramita desde fevereiro de 2020, quando a Justiça mineira aceitou denúncia do MPMG e transformou em réus 16 pessoas, sendo 11 funcionários da Vale e cinco da Tüv Süd.
Junto com as duas empresas, eles respondem por homicídio doloso e diferentes crimes ambientais. Trabalhando em parceria com a Polícia Civil, os promotores que ofereceram a denúncia consideraram que já existia farto material probatório, que comprovariam os riscos assumidos deliberadamente pela Vale e pela Tüv Süd.
A juíza da comarca de Brumadinho, Renata Nascimento Borges, conduz o processo e solicitou à PF o laudo de engenharia. Ele já compõe o acervo do caso. Em um despacho no mês passado, Renata informou às partes – MPMG e advogados dos réus – que o documento foi recebido. Eles podem consultá-lo de forma monitorada. “O arquivo foi impresso e disponibilizado na plataforma de documentos sigilosos”, escreveu a magistrada.
No dia 24 de agosto, foi aberto o prazo para apresentação das defesas. Considerando que a denúncia é extensa, a juíza concedeu 90 dias para os réus apresentarem suas alegações. Além disso, autorizou que os espólios de 36 vítimas atuem como assistentes da acusação do MPMG.
Passados mais de um ano e meio do recebimento da denúncia, três réus ainda não foram sequer citados. Marlísio Oliveira, outro engenheiro da Tüv Süd, não tem sido localizado nos endereços apontados pelo MPMG. Além disso, a própria empresa Tüv Süd também não tem funcionado nos locais indicados como seu escritório. Novas tentativas ainda serão realizadas pela justiça.
Falta também citar o executivo alemão Chris-Peter Meier. Ele trabalha na sede da Tüv Süd na Alemanha. De acordo com a denúncia do MPMG, Meier desempenhou papel importante na decisão de assinar a declaração de estabilidade da barragem.
Diante das peculiaridades decorrentes do fato de ser um réu estrangeiro, a juíza determinou o desmembramento do seu processo. Isso significa que ele será julgado separadamente. Recentemente foi expedida uma carta rogatória, instrumento jurídico para comunicação entre as Justiças de países diferentes.
Além do processo criminal, as discussões em torno das indenizações se desenrolam em ações na esfera cível ou em negociações extrajudiciais. Em fevereiro deste ano, um acordo no valor de R$37 bilhões foi selado entre a Vale, o governo de Minas Gerais, o MPMG, o MPF e a Defensoria Pública do estado.
Foram previstos diversos projetos que incluem, por exemplo, programas para transferência de renda, ações de recuperação socioambiental, medidas voltadas para garantir a segurança hídrica, melhorias dos serviços públicos e obras de mobilidade urbana. As tratativas, no entanto, não abarcaram as indenizações individuais e trabalhistas que devem ser pagas às vítimas, as quais são discutidas em negociações específicas.
O caso também chegou à Justiça alemã. Nesta terça-feira (28), acontece a primeira audiência oficial de um processo movido contra a Tüv Süd por sobreviventes da tragédia e por familiares dos mortos. Além das pessoas físicas, os municípios mineiros de Brumadinho e Mário Campos também integram a ação que tramita no Tribunal Regional Superior de Munique.