Os ecos da voz de Cida

02/11/2020

Elisa Rabelo

Fonte:https://medium.com/batuquevital/os-ecos-da-voz-de-cida-c29cc5abdefd

Na Comunidade Quilombola do Córrego do Rocha, Cida é voz ativa, que ecoa longe. Uma história presente sobre cuidado, ancestralidade e luta.

Cida, do Córrego do Rocha

Maria Aparecida Machado Silva é nascida e criada na Comunidade Quilombola Córrego do Rocha. Aos 45 anos de idade, ela vive ali com sua família — um marido e três filhos. No dia-a-dia, Cida, como é chamada pelos seus conterrâneos, divide a sua atenção entre os cuidados de seus pais e seu marido, que são idosos, seus três filhos (Janaína, de 17 anos, Jailson, de 13 e Jackson, de 24) e cerca de 65 famílias que vivem na comunidade, localizada no município de Chapada do Norte, na região de Jequitinhonha, em Minas Gerais.

O cuidado parece permear toda a vida de Cida. Durante a entrevista, que durou quase duas horas e foi realizada à distância, a mãe de Janaína explicou que, enquanto conversava comigo, arrumava o cabelo da filha, pois no dia seguinte, ela faria 17 anos. O cabelo de Janaína é crespo e foi alisado por muito tempo, até que, há quase dois anos, ela decidiu assumi-lo em sua versão natural, afro. Com o celular apoiado entre o ombro e o queixo, a mãe desembaraçava os cachos da filha enquanto conversava comigo.

O que Cida fazia em sua casa enquanto passava as informações demandadas parece um mero detalhe, mas considerando a sua história de vida, esse ato cotidiano ganha um simbolismo especial. A relação de Cida com as pessoas, com o cuidado e com sua ancestralidade, está em tudo que ela faz.

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Cida trabalhando na lavoura | Fonte: arquivo pessoal

De transporte escolar gratuito ao abastecimento de água para higiene pessoal: a quilombola trata das diversas reivindicações de quem passa por ali. Há mais de 16 anos, Cida presta serviços voluntários pela comunidade, liderando a tomada de decisão em ações comunitárias. Com isso, ela diz que leva a fama de que “carrega a comunidade nas costas”.

Córrego do Rocha possui aproximadamente 90 moradores e uma alta taxa de moradias desocupadas. Isso porque a migração é uma realidade comum no quilombo. Quando Cida concedeu a entrevista para esta reportagem, ela ressaltou a falta de seus dois filhos homens, que, em meio à agonia causada pelas decorrências da pandemia, haviam partido para Praia Grande (SP) vender objetos no litoral. Era a primeira vez que o mais novo, Jailson, saía para trabalhar. “Essa é uma realidade do norte de Minas”, diz a quilombola, sobre a evasão de menores para garantir seus “bicos”, demonstrando ter a consciência de que um menor trabalhar é errado, mas sabendo que o poder de escolha não é garantido para esses jovens.

No Córrego do Rocha, há uma associação comunitária que lida com as necessidades dos quilombolas e os representa nas tomadas de decisões. Nela, as lideranças são voluntárias e nomeadas por meio de uma assembleia geral. Assim, Cida foi nomeada três vezes presidente da associação — sendo duas delas seguidas — e uma vez conselheira. Atualmente, de volta à presidência, ela se encontra em diálogo constante com a população, com os poderosos do município e com diversas instituições que fornecem serviços ao quilombo.

De acordo com ela, é necessário ter uma associação ativa, que mobilize a sociedade. Cida diz com orgulho que no dia anterior à entrevista, ela conseguiu mobilizar 90% das famílias da comunidade para uma reunião — o que é um desafio, já que nem todos os moradores possuem acesso à internet.

História não é só passado

A alguns passos da casa de Cida, na mesma rua, mora sua mãe. Todos os dias, quando Cida chega do trabalho, ela a visita e se dedica aos seus cuidados. A relação das duas é intensa, uma vez que a filha citou a mãe como seu principal elo emocional. Mas o fator hereditário também diz muito: ao que tudo indica, Cida seria tetraneta de um refugiado — termo utilizado para designar o escravizado liberto que ocupou o quilombo em seus primórdios. Isso porque sua mãe é neta de um dos primeiros moradores do quilombo.

Essa relação corre em seu sangue, mas seus detalhes são desconhecidos pela própria Cida, que sabe a importância de que a história seja contada, mas mostra a dificuldade que é externalizá-la das lembranças dos anciões. “É muito doloroso. Eu consigo falar com muita facilidade porque passei a entender o contexto, mas para os nossos pais e avós, pra quem teve uma realidade negativa, lembrar é muito doloroso, porque [a pessoa] não esquece. Imagina a dor que é ter que transmitir para outras pessoas que passou por aquela situação.”

É sabido que a história do Córrego do Rocha, assim como a da maioria dos quilombos no Brasil, foi construída sob dor, em meio a reflexos da escravidão. Esse fator permanece, mas parece tímido e abafado, porque a história não foi contada por muito tempo. Por outro lado, ela é feita diariamente pelos quilombolas, e, no presente, a realidade para Cida é de luta.

Reunião da associação do quilombo Córrego do Rocha | Fonte: acervo pessoal

Desde menina, Cida tinha instinto de luta, segundo ela. Sua resistência começou antes mesmo de poder entender o mundo como ele é, e adquirir a consciência social que possui hoje. Lutar para resistir, para preservar a história da sua comunidade e garantir dignidade para seu conterrâneos, é essa luta que a quilombola compra.

Quando perguntada qual o significado de ser quilombola, Cida, que não se mostrou ser uma mulher de poucas palavras, responde rapidamente: “é resistir […] ser quilombola é como se a gente conseguisse não apagar a história”.

Da colheita de café à formatura

Ao final dos anos 80, a única escola da comunidade quilombola Córrego do Rocha oferecia apenas educação infantil, até a quarta série do primário. A pequena Maria Aparecida, de 13 anos, já tinha o sonho de estudar, e fez de tudo para que seu pai a permitisse frequentar a escola que ensinava a partir da quinta série. Ela ficava longe e, na maioria das vezes, só os meninos podiam ir.

Então, quando conseguiu a autorização para seguir com seus estudos, Cida foi com seu pai para a colheita de café. Ela queria conseguir dinheiro para comprar um chinelo novo, já que na nova escola teriam muitas pessoas novas, de outras comunidades.

Seguindo com o sonho, ela se mudou para cidade de Chapada do Norte para estudar, e lá, morou em uma casa de família, onde ajudava com alguns serviços, em troca da moradia. Com o tempo, a troca se tornou exploração, e Cida teve que assumir todo o serviço doméstico. “Hoje, eu entendo que era um trabalho escravo. Até para comer, tinha que ser depois que toda a família comia”, ela diz.

Entre a rotina de precisar ir ao rio lavar as roupas da família, além de outras tarefas, como estudar e lidar com as demais áreas da vida, a então adolescente desenvolveu depressão. Foi quando, perto de formar, ela precisou interromper os estudos, e foi levada a uma clínica na capital mineira.

Na época, as doenças psíquicas eram estigmatizadas e Cida foi tida como louca e tratada como tal. Sua trajetória com a depressão não terminou ali: mesmo depois de sair da clínica e voltar para o quilombo, os tratamentos continuaram, e ela viria a desenvolver novamente a doença, após o parto do primeiro filho.

Porém, o que mais a angustiava era o fato de, por tão pouco, ter perdido sua formatura. Para Cida, marcar em um formulário que teve o ensino fundamental completo era um sonho, e a impossibilidade de fazer isso, mesmo depois de todos os desafios para estudar, foi o que mais a frustrou.

Felizmente, hoje, Cida pode marcar essa opção em um formulário, pois, já com 20 anos, ela conseguiu se mudar para Berilo e terminar a oitava série. 25 anos depois, ela ainda se lembra da sua nota final em Português. Foi 98 em 100, fato que ela conta esboçando felicidade e orgulho.

A luta de Cida pelo ensino básico não é uma situação isolada. Atualmente, a escola do quilombo já oferta o ensino médio. Apesar disso, nem sempre, os jovens conseguem completar os estudos. A evasão escolar é comum, principalmente no meio do ano (quando ocorre a migração para a colheita de café) e no final do ano (momento em que muitos jovens vão trabalhar nas praias, assim como Jackson e Jailson fizeram).

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Visita ao centro de apoio aos artesão | Fonte: acervo pessoal

Conquistando espaço

A história de Cida como líder comunitária começou com uma proposta de trabalho voluntário como animadora comunitária, que foi interpretada por ela como um teste divino, motivo que a levou a aceitar. A partir daí, a trajetória ainda não terminada foi longa.

Uma frente comunitária ativa, além de levar aos quilombolas melhores condições para viver, confere a esse povo uma voz enérgica. Cida já levou a voz de sua região para a capital mineira e para outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. Ela conta com orgulho e humildade que é uma mulher negra, semianalfabeta que andou de avião.

Maria Aparecida na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, recebendo uma medalha de honra ao mérito | Fonte: Arquivo pessoal

“Não vou dizer que eu fui conquistando poder, mas eu fui conquistando espaço, admiradores” — Cida sobre sua trajetória na representatividade comunitária

Pandemia lá fora, falta de água aqui dentro

A pandemia do coronavírus, que matou mais de 160 mil brasileiros até a última atualização desta reportagem, não chegou ao Córrego do Rocha, mas suas implicações trouxeram novos desafios aos quilombolas e enfoque a um problema antigo: o desabastecimento de água.

Com a escola da comunidade fechada, muitas mães que trabalhavam em fazendas na parte da tarde tiveram que abrir mão do serviço para cuidar dos filhos em casa. A entrada de dinheiro diminuiu, já o custo de vida, aumentou. A escola ali tem um papel crucial além da educação: a alimentação dos jovens. Com os filhos em casa e recursos básicos mais caros, as famílias viram as contas de energia, água e alimentação aumentarem.

Os jovens, por sua vez, se viram com poucos recursos para prosseguirem com os estudos, que estavam ocorrendo remotamente através de apostilas. Aulas online não foram implementadas, devido à falta de recursos.

Além disso, a falta de água na torneira das casas do quilombo não permitiu a adoção dos protocolos de higiene orientados pelos órgãos de saúde. O desabastecimento hídrico é uma realidade antiga para muitas famílias do Córrego do Rocha.

Quando questionada sobre o motivo do desabastecimento, Cida responsabiliza a má gestão da prefeitura do município. Para ela, esse é um problema de calamidade pública, e a maior parte dos esforços da associação que ela preside é voltada a resolver essa situação.

A região do Jequitinhonha, onde fica o quilombo, está localizada ao norte de Minas, e é naturalmente muito seca. Além disso, as práticas agropecuárias na área são feitas sem acompanhamento técnico; portanto, ocorrem sem muita responsabilidade pelo uso sustentável do recurso, que acaba faltando para os mais vulneráveis. Assim, os moradores estão presenciando a seca de diversos córregos na região.

Para reverter a situação, Cida vem tentando levar à tribuna de Chapada do Norte uma carta de apoio em nome de toda a Comunidade Quilombola de Córrego do Rocha. Algumas tentativas não sucederam, e a leitura da carta aberta foi adiada para dezembro, como se o problema não fosse urgente. A líder comunitária, sem esconder sua indignação, diz que os parlamentares estão impedindo os quilombolas de reivindicarem seus direitos básicos.

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