Perseguição atroz aos Carroceiros em Belo Horizonte – povo tradicional injustiçado

13/01/2021

Por Alenice Baeta*

O Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, entidade fundada em 1985, que tem como objetivo promover a informação e formação cultural e pedagógica, documentar, arquivar, pesquisar e publicar temas de interesse dos movimentos sociais, estudantes e pesquisadores, dentre eles, sobre as comunidades tradicionais- seus registros, histórias e organização por seus direitos constitucionais e internacionais, se dirige ao Prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, solicitando veementemente que não sancione o Projeto de Lei PL 142/2017. Tal PL aprovado recentemente na câmara municipal, encontra-se composto por uma série de inconsistências e injustiças, votado em cenário de pandemia, que trata sobre a gradativa extinção do trabalho dos carroceiros e das carroceiras na cidade. Os representantes e manifestantes da luta carroceira ficaram do lado de fora do plenário da câmara durante a  votação, sem saber o que estaria sendo discutido sobre o seu destino, perplexos, com tamanho absurdo e desrespeito. Tudo parece uma grande manobra de pessoas e entidades, ditas ‘ambientalistas’, que não conhecem sobre as necessidades das comunidades periféricas e as diferenças culturais e sócioeconômicas que as permeiam, com clara postura obscura, colonialista, racista e higienista que buscam impor à múltipla sociedade belo-horizontina um único modelo de relacionamento entre humanos, animais e a natureza. Muitos carroceiros têm somente a sua renda familiar baseada no seu trabalho árduo e diário na carroça, realizando vários tipos de fretes na periferia da cidade, além de ser meio de transporte para a sua família.

Muito importante ressaltar que o Povo Carroceiro é uma importante categoria de “Comunidade Tradicional” típica na capital mineira, já com Auto Declaração formalizada, o que confere valor jurídico e ético no âmbito do patrimônio cultural e imaterial. Por isto, o documento do PL é um grave equívoco e ataque ao direito e à vida dos mais de 10.000 carroceiros da capital e região metropolitana e seus familiares, uma categoria de Comunidade Tradicional invisibilizada, todavia, protegida pelos artigos 215 e 216 da CF/1988, pela Convenção 169 da OIT, da ONU, bem como, pelas Políticas Nacional e Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais. Tal exclusão viola, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Além disso, o “Ofício de Carroceiro” é considerado um legado histórico devendo ser respeitado enquanto meio de transporte milenar e tradicional em zonas rurais e urbanas. Trata-se de patrimônio biocultural e intangível, o que implica em um profundo conhecimento ecológico por parte dos carroceiros e carroceiras, bem como, etológico dos cavalos relacionados aos saberes referentes às escolhas das madeiras mais adequadas para fabricação das carroças e suas distintas tecnologias construtivas, uso de plantas medicinais, benzeções e outras formas de cuidado da saúde dos animais, bem como o manejo e a coleta de diversas espécies de gramíneas de crescimento espontâneo nas cidades que compõem parte da dieta oferecida aos cavalos. A carroça que pode possuir vários formatos, tipos e desenhos ao longo do tempo, constitui-se ainda como artefato, apresentando uma etnografia carroceira que merece registro e inventário patrimonial. Os espaços de uso como ruas, lotes, descampados e seus trajetos constituem territorialidades da tradição carroceira e suas conexões e redes socioespaciais. O modo de vida tradicional de carroceiros e cavalos também envolve formas específicas de sociabilidade, tais como, as catiras e as cavalgadas, baseadas na reciprocidade e parentesco, bem como relações de solidariedade e vigilância entre os carroceiros, muitos, habitantes em terrenos expostos a enchentes sazonais e à violência urbana, incluindo o roubo de cavalos e carroças. Entre os carroceiros e cavalos as relações são de afetado e cuidado e não relações de mercado. Inclusive, uma demanda dos próprios carroceiros é justamente a fiscalização para que haja coibição de maus tratos e a garantia dos direitos, acolhimento e saúde dos animais. As relações geracionais desta cultura ancestral são transmitidas basicamente por meio da oralidade e ensinamentos no âmbito familiar.  Muito comum ver três gerações de carroceiros juntas em uma carroça, constituída como espaço de resistência e sociabilidade, mas sempre em movimento. Bom lembrar que muitos carroceiros em áreas rurais e ou urbanas podem pertencem duplamente a categorias de outros povos tradicionais, tais como, Ciganos, Agricultores Familiares e Quilombolas. Este imbricamento traduz a forte complexidade cultural que envolve esta importante categoria sócio-cultural, que merece atenção e reverência. O ofício carroceiro é tão legítimo e importante quanto os dos Pipoqueiros, Lambe-Lambes e Engraxates, por exemplo (já indicados oficialmente na esfera municipal como patrimônio cultural), e certamente, ainda é mais antigo que estes.                 

A construção das cidades, mesmo as mais recentes, incluindo Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, não teria sido possível sem o apoio contínuo dos carroceiros, transportando por caminhos tortuosos gêneros alimentícios para os operários, bagagens e mobiliário para os primeiros moradores do antigo “Arraial do Curral del Rei”, além de material de construção e de obras trazidas das estações dos trens. Em 2000 foram inclusive homenageados por meio da instituição do Dia Municipal do Carroceiro, comemorado todo primeiro domingo de setembro, quando ainda foi criado o projeto “Carroça Legal”, que visava a regularização das carroças e apoio sanitário aos animais.

O PL 142 tecnicamente também é uma aberração, pois não há estudos sérios que ateste a viabilidade de se substituir cavalos por motos com caçambas, “cavalos de lata”, o que aumentará a poluição sonora e do ar e o número de acidentes no trânsito. As orientações nas cidades, seguindo as normas internacionais é justamente elaborar projetos que diminuam ao máximo o uso de combustível fóssil na cidade e a velocidade dos veículos, valorizando meios de transporte alternativos e limpos, e não o contrário. Está sendo desrespeitado totalmente o compromisso básico de promover uma cidade com baixo carbono associado a um planejamento urbano com menores taxas de emissões de dióxido de carbono (CO2), o principal gás de efeito estufa (GEE).

Por trás das rédeas estão homens, mulheres e jovens cheios de coragem e de força ancestral que enfrentam diariamente o trânsito e o espaço urbano visando o sustento de suas famílias, mas, sobretudo, que encaram o preconceito e a insensatez mascarada por uma modernidade impregnada de privilégios.

 

*Membro do CEDEFES; Historiadora e Arqueóloga; Doutora pelo Museu de Arqueologia e Etnologia MAE/USP; Pós-Doutorado em Antropologia/Arqueologia – FAFICH/UFMG.

 

 

 

Print Friendly, PDF & Email