05/07/2020
“É impossível aceitar. Neste momento, o Senado faz o que o ministro do Meio Ambiente disse. Está passando a boiada”, afirma ativista pelo direito à água
Para Cristina, a entrega de serviços e bens essenciais afeta diretamente os cidadãos mais frágeis. “É um grande risco. Nossa experiência mostra que é um risco para os mais pobres. Os empresários querem lucro. A centralidade deles é pelo lucro, não pelo serviço e pelo acesso ao direito.”
A coordenadora critica o argumento do mercado e dos capitalistas mais radicais de que, nas mãos da iniciativa privada, melhora o serviço e o acesso. Para contestar, ela lembra de um exemplo prático: a energia elétrica. “Já tivemos serviços muito importantes privatizados, como por exemplo a energia elétrica, as telecomunicações (…) O que vimos com a privatização da energia, quem efetivamente conseguiu colocar energia para a população do campo, que vive de forma difusa, foi o Estado”, disse.
Ela lembrou, no caso da energia, do programa Luz para Todos, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mesmo após a privatização em massa dos serviços de energia, a população em locais mais distantes, especialmente no semiárido nordestino, não foi atendida. Precisou do Estado para tal. “Com a privatização da água, a perspectiva é essa, que vemos nos processos de privatização”, conclui.
Cristina não poupou críticas à política do governo de Jair Bolsonaro. Sob pretensa ideologia de “diminuir o Estado”, lucram os cada vez mais ricos e sofrem os mais pobres. “O mercado tem a lógica do lucro e não da vida. Para nós, privatizar é radicalmente diferente de garantir acesso. Vai na contramão da democratização do acesso. É um retrocesso enorme para as populações, especialmente do semiárido e de baixa renda”, afirmou.
“É impossível aceitar. O Senado faz efetivamente o que o ministro do meio ambiente disse em momentos anteriores. Aproveitar a pandemia para passar a boiada”, completou, ao lembrar da fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial, quando disse abertamente para que o governo aproveitasse as atenções focadas na pandemia do novo coronavírus para “passar a boiada”.
Passar a boiada, no caso, se refere a projetos como o PL do Saneamento. Sem a devida atenção da sociedade, aprovam temas que ferem a maioria dos brasileiros; destroem a natureza e ampliam os lucros de uma pequena elite. A privatização da água possui ligação íntima com a devastação ambiental, argumenta a coordenadora.
“O meio ambiente está na mira de quem quer comercializar a água, quem quer ter o domínio. Essa é nossa preocupação. Temos no Ceará várias comunidades indígenas em conflito por terra, por água, como o povo Tremembé na região litorânea. Temos outros povos na região do sertão central onde está sendo discutido a mineração. São grandes projetos que buscam, de certa forma, acabar, destruir o modo de vida das populações e dos povos tradicionais”, disse.
A intenção de “passar a boiada” fica evidente, argumenta Cristina, pela velocidade e falta de diálogo sobre a matéria. “O Senado deveria ter aberto o diálogo. A forma e o momento como foi aprovado mostra claramente uma preocupação política de que o Congresso está passando leis e matérias importantes, que impactam nas nossas vidas. Isso passa da noite para o dia. É uma prática condenável que fere a democracia. Muita gente nem sabe que isso foi aprovado. Isso é muito preocupante.”
O PL do Saneamento passou no Senado sob relatoria do político cearense Tasso Jereissati (PSDB). Cristina denuncia o interesse obscuro da pauta. “Precisamos explicitar que quem está na relatoria do projeto é um grande empresário cearense, o Jereissati. Um empresário interessado na venda da água em vários estados, especialmente no Ceará, para empresas como a Coca Cola. Tem muita necessidade por trás e vontade dos empresários com o tema.”
Os interesses de empresários acima da sede de brasileiros não é uma história de hoje, comenta Cristina. Entretanto, o cenário tende a piorar rapidamente. “No semiárido, historicamente, as grandes estruturas hídricas foram construídas em propriedades privadas. Esses açudes usavam mão de obra barata dos agricultores sob desculpa da seca. Mas, na prática, eles ficavam em propriedades privadas onde a população não tinha acesso.”
“Temos experiências de casos em que a água está estocada, concentrada e o acesso não é possível. Mais recentemente, o Canal do Trabalhador, no Ceará. Uma grande obra hídrica que se interliga com a transposição do São Francisco. Todo o percurso dela passa em propriedades de grandes agricultores e a população não tem acesso. Essa água é destinada a irrigação, à produção de grandes indústrias. E temos pequenos agricultores sem água ao lado desses açudes”, completa.
Tal situação insustentável já levou a conflitos durante a história. Conflitos destinados à repetição. “Essa é a prática do agronegócio, do hidronegócio. Tivemos conflitos decorrentes desse controle da água. Infelizmente, essa é uma realidade no semiárido, realidade das populações do campo. Há uma disputa pela água. Quando a água é mais rara, com chuvas sem regularidade, seca. A privatização, de certa forma, sob ótica de estocar água, já é prática histórica no semiárido. Agora, isso pode se institucionalizar”, finaliza Cristina.
A ASA publicou uma carta em defesa do direito democrático à água. A entidade já acumula 20 anos de lutas e conquistas em defesa do direito humano básico. Agora, o inimigo é mais agressivo. Confira o texto da entidade:
O Senado da República acaba de aprovar o Projeto de Lei 4.162/19, que trata do saneamento no país, mas em cujo bojo se abrem as portas para a privatização das águas no Brasil.
Pelo contexto em que se vive, o Senado segue a orientação de “aproveitar o ensejo da pandemia para fazer passar a boiada”, aprovando ações que são contra a população, especialmente os mais pobres e voltadas para o enriquecimento e processos de acumulação de grandes empresas. Se este projeto entra em ação, as periferias, as cidades de menor porte e os atualmente excluídos dos serviços de saneamento, que engloba, entre outras questões o acesso à água, serão cada dia mais excluídos dos direitos básicos à vida.
Os senadores/as e os deputados/as federais, que aprovaram o projeto antes, prestam um enorme desserviço à população, quando deveria estar zelando pelo seu bem estar e pela melhoria de suas condições de vida. Os beneficiários serão as grandes empresas de água, os grupos econômicos que há muito preparam o bote sobre nossos aquíferos e mananciais e agora têm seu caminho aplainado. Os prejudicados são os de sempre. Os pobres e excluídos.
Na contramão da história mundial, as autoridades brasileiras enfatizam a dimensão da água enquanto mercadoria, desfazendo-se de sua perspectiva de bem comum ao qual todos devem ter acesso garantido. E as empresas de água se centram não no serviço à população, mas sim no lucro uma vez que rios e mananciais serão explorados até ficarem à míngua, levando danos irreversíveis a sociobiodiversidade.
Ainda na contramão da história, o Brasil dedica-se a entregar o acesso à água à ganância de uns poucos, quando muitos países, após péssimas experiências com a privatização dos serviços de água e esgoto, buscam reestatizá-los. Isso porque as empresas responsáveis atuaram de modo ineficiente, com serviços extremamente caros e sem universalizar as ações, buscando apenas resultados financeiros.
A ASA, neste contexto, reafirma sua opção política de estar ao lado do mais pobres, de considerar a água como um bem comum e não como mercadoria e de lutar para que o acesso seja universalizado. E isso, de modo especial no Nordeste e Semiárido.
Conclamamos o Consórcio de Governadores do Nordeste para estar vigilante na busca da garantia do direito à água e ao saneamento básico para todas as pessoas do Nordeste e Semiárido. E igualmente vigilantes para não entregar nossos rios, fontes e mananciais à ganância a um pequeno grupo de exploradores dos bens públicos e naturais. E que o Consórcio se sirva de todos os meios éticos possíveis para garantir o saneamento a todas as pessoas. Esta será uma estrada de resistência, que nos propomos a palmilhar juntos.