18/03/2022
Povo Kamakã Mongoió pode sofrer reintegração de posse em 26 de março, mas despejo vai na contramão de decisões do STF
Indígenas afirmam que não sairão da retomada. Vale contesta propriedade da terra – Foto: Alenice Baeta/ Cedefes
Membros da aldeia Kamakã Mongoió, localizada em Brumadinho (MG), denunciam que na manhã desta sexta-feira (18) mais uma vez seu território teve a presença de carros da Polícia Militar e da mineradora Vale S.A. Os indígenas receberam uma ordem de despejo para o dia 26 de março, que ainda pode ser revertida, e relatam como constrangimento e assédio a presença da PM e da empresa antes da data.
O cacique Merong Kamakã conta que as “visitas”, inclusive, têm sido recorrentes desde 5 de março deste ano, quando receberam a primeira ordem para desocupar a terra.
“Frequentemente estamos tendo a presença da PM, juntamente com a segurança da Vale, fazendo pressão psicológica pra gente se retirar da nossa aldeia”, conta o cacique. “Temos crianças que estão estudando na escola em Casa Branca [bairro], que às vezes não vão à aula porque eles chegam justamente na hora das crianças irem pra escola”.
Nas palavras de Merong Kamakã, a postura da mineradora e da Polícia Militar têm sido uma “covardia”.
A retomada fica na região do Córrego de Areia, Estrada Maurilio Parreiras Maia, no bairro Casa Branca, e leva o mesmo nome do povo indígena que a organiza. A aldeia Kamakã Mongoió é composta também por indígenas das etnias Puri e Kambiwá.
Ordem de despejo
A reintegração de posse foi pedida pela empresa Vale à 2ª Vara Cível, Criminal e de Execuções Penais da Comarca de Brumadinho, que em 4 de março decidiu por expedir a ordem de despejo imediata. A juíza Renata Nascimento Borges foi a autora da ordem.
No sábado, dia 5 de março, a aldeia Kamakã Mongoió recebeu então a visita do Oficial de Justiça, da Polícia Militar e de funcionários da Vale, informando que os indígenas teriam 24 horas para se retirarem do local. O período não foi cumprido pelos integrantes da aldeia, gerando um Boletim de Ocorrência por parte da Vale e uma nova ordem de reintegração de posse, agora para 26 de março.
Através do cacique Merong, a aldeia manifesta que não irá se retirar da terra. “Nossa palavra para eles sempre vai ser resistência”, garante.
Contradições no processo
Por se tratar de uma questão indígena, a Constituição Federal afirma que cabe à Justiça Federal julgá-la. A determinação está no Artigo 109: “Aos juízes federais compete processar e julgar: (…) XI – a disputa sobre direitos indígenas”. Isso incluiria envolver a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Para que o processo fosse julgado em Brumadinho, na Justiça Estadual, os advogados da Vale argumentaram que o conflito acontece entre interesses de uma empresa privada (Vale) e “particulares” (povo Kamakã Mongoió), inexistindo assim interesse da União no julgamento. Motivo que parece ter sido aceito pela 2ª Vara de Brumadinho.
A Funai, que poderia levar o processo à instância federal, foi procurada pela reportagem, mas ainda não se pronunciou.
A advogada Lethicia Reis, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e representante da aldeia no processo, avalia a situação como inconstitucional.
Decisões federais impedem despejo
Além disso, a advogada lembra de duas decisões do Supremo Tribunal Federal que atualmente desautorizam o despejo de indígenas.
Uma liminar provisória do ministro Luís Roberto Barroso foi aprovada pela maioria dos ministros do Supremo, em dezembro de 2021, suspendendo as remoções forçadas de comunidades durante a pandemia de covid-19. A medida é válida até 31 de março, ou seja, o despejo da aldeia Kamakã Mongoió em 26 de março seria ilegal.
A outra é uma determinação do ministro Edson Fachin, em maio de 2020, especificamente sobre as comunidades indígenas. O ministro considerou que esses povos sofrem há séculos com doenças que já dizimaram etnias inteiras e que a tramitação dos processos, com o risco de reintegrações de posse, poderia agravar a situação.
O ministro suspendeu os despejos de indígenas até o fim da pandemia ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 no STF, do qual é relator. Esse recurso definirá o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena.
Edição: Larissa Costa