16/08/2017
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedentes as Ações Civis Ordinárias (ACOs) 362 e 366, movidas pelo estado de Mato Grosso contra a União Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai), em função da demarcação de terras indígenas. A decisão, tomada na manhã desta quarta (16), reafirmou os direitos constitucionais dos povos originários e foi comemorada pelo movimento indígena.
Indígenas e quilombolas viraram a noite em vigília na Praça dos Três Poderes e acompanharam julgamento no STF. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi.
Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação
O estado de Mato Grosso sustentava que a União havia criado reservas indígenas sobre terras que pertenceriam ao estado e que não seriam de ocupação tradicional dos povos que nelas estão. Assim, a ACO 362 pedia indenização por áreas “devolutas” – ou seja, sem uso – que teriam sido anexadas pelo governo federal ao Parque Indígena do Xingu (PIX), criado em 1961. A ACO 366, bastante semelhante, pedia o mesmo em função da demarcação de terras indígenas dos povos Nambikwara, Pareci e Enawenê-Nauê, na década de 1980.
Os ministros do STF julgaram as ações em conjunto e decidiram, por oito votos a zero, que estava fartamente comprovado que as áreas reclamadas pelo estado de Mato Grosso eram de ocupação tradicional indígena e que, portanto, não cabia indenização.
Últimas semanas foram de muita mobilização, em Brasília e nas regiões. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
Ação do Rio Grande do Sul não foi julgada
Nas últimas semanas, os povos indígenas se mobilizaram em todo o Brasil em defesa de seus direitos originários e contra a tese do chamado marco temporal, afirmando que suas histórias não começaram em 1988. Havia a preocupação de que os julgamentos desta quarta (16) trouxessem à discussão os postulados da tese, defendida pelos ruralistas, segundo a qual os indígenas somente teriam direito às terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988.
Por isso, cerca de cem indígenas acompanharam o julgamento no plenário do STF, enquanto outras dezenas aguardavam do lado de fora, depois de uma longa vigília iniciada na noite anterior junto com quilombolas. Ao mesmo tempo, manifestações e trancamentos de rodovias eram realizadas em todo o país. Alguns grupos de indígenas, como os Guarani e Kaiowá e os Kaingang, passaram mais de uma semana em Brasília, realizando rezas e rituais diários.
Além das duas ações julgadas, uma terceira, a ACO 469, também estava prevista para esta manhã, mas acabou sendo retirada de pauta. Trata-se de uma ação movida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) contra o estado do Rio Grande do Sul, pedindo a nulidade de títulos incidentes sobre a Terra Indígena (TI) Ventarra, do povo Kaingang.
Como era a única ação que tratava de uma demarcação realizada após a promulgação da Constituição de 1988, havia a previsão de que a tese do marco temporal fosse um dos pontos de discussão. A partir de um pedido da Funai e do estado do RS, entretanto, ela foi retirada de pauta pelo relator, o ministro Alexandre de Moraes. Não há previsão de quando será julgada.
Mobilização indígena em Brasília e nas regiões durou semanas. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
Direitos originários reafirmados
Embora a tese do marco temporal não tenha sido objeto direto do julgamento, os votos dos ministros tocaram neste ponto e, à exceção do ministro Gilmar Mendes, todos reafirmaram os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais.
“Os ministros do Supremo, de modo majoritário, reafirmaram que o conceito de tradicionalidade dos povos indígenas tem a ver com o modo de ocupação das suas terras e tem fundamento na legislação brasileira muito anterior à Constituição Federal de 1988”, avalia Cleber Buzatto, secretário Executivo do Cimi.
A Constituição Federal reconhece aos povos indígenas, em seu artigo 231, “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O julgamento no STF envolveu, assim, a discussão sobre o que são essas terras tradicionais. Grupos de interesses políticos e econômicos, como os ruralistas, pretendem limitar este conceito com o marco temporal, um critério não previsto pela Constituição Federal.
As constituições brasileiras e a própria legislação colonial têm um longo histórico de reconhecimento do direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais. É por isso que os direitos indígenas são considerados originários: precedem a criação do próprio Estado brasileiro. Este arcabouço jurídico e histórico, do qual a Constituição Federal de 1988 é uma continuidade, constitui o chamado “indigenato”, e foi citado no voto do relator das ações, o ministro Marco Aurélio de Mello, seguido pelos demais.
Indígenas se encaminham para entrar no STF, de manhã, e acompanhar julgamento. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
Raposa Serra do Sol
A tese do marco temporal foi pela primeira vez enunciada pelo STF no acórdão do caso Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR), que estabeleceu, além do marco temporal, 19 condicionantes para a demarcação da TI Raposa Serra do Sol.
Embora a corte do STF tenha definido que esta decisão se aplicaria somente àquele caso específico, em 2015, duas decisões da Segunda Turma do STF aplicaram o marco temporal para anular a demarcação das TIs Guyraroka, dos Guarani Kaiowá, e Limão Verde, dos Terena.
Em julho deste ano, após acordo com a bancada ruralista, Temer assinou um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) estendendo as condicionantes daquele julgamento para todos os órgãos do Executivo, poder responsável pela demarcação de terras indígenas.
“Na decisão de hoje foi reafirmada a tese do indigenato, frente à tese do chamado marco temporal. Além disso, foi reafirmado pelo Supremo que as condicionantes da Petição 3388 valem só e unicamente para o caso Raposa Serra do Sol. Ao não aplicar o marco temporal nem as condicionantes do caso Raposa, os ministros reafirmaram que esta decisão não se estende a outras áreas”, avalia o secretário executivo do Cimi.
Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
Marco temporal: vencida a batalha, a luta continua
“Apesar de não ser objeto direto das ações julgadas, a tese do marco temporal sofreu forte impacto e os indígenas saíram mais fortalecidos. Ficou bastante clara a rejeição à tese, o que afeta diretamente o parecer vinculante da AGU assinado por Temer”, avalia Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi.
O ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, deixou claro que o marco temporal não estava em discussão, mas apresentou sua posição contrária à tese. “Entendo que somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente os territórios que possuam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram”, afirmou.
O ministro Ricardo Lewandowski reforçou a precisão científica e a validade dos estudos antropológicos como provas jurídicas – outro assunto recorrentemente criticado pelos ruralistas.
“É muito comum serem os laudos antropológicos desqualificados, imputando-lhes a característica de que são mera literatura”, afirmou o ministro. “A antropologia é sim uma ciência, tem um método próprio, um objeto específico e baseia suas conclusões em dados empíricos”.
A ministra Rosa Weber, em seu voto, reafirmou o conceito de “ocupação tradicional” definido pela Constituição Federal de 1988, mais abrangente do que pretende a tese do marco temporal. “Sabemos que devido às próprias características culturais dos índios, [ocupação tradicional] não significa necessariamente estar sobre a terra”, afirmou a ministra.
Gilmar Mendes, principal defensor do marco temporal, estava impedido de votar na ACO 362, pois já havia se posicionado quando ainda era Procurador-Geral da República, na década de 1990 – na época, a favor dos indígenas.
Apesar de seguir o voto dos demais ministros, Mendes fez um longo discurso anti-indígena, defendendo o marco temporal e dizendo que, sem ele, acabaríamos por “devolver Copacabana aos índios”, argumento comumente utilizado pela bancada ruralista. Isolado e descolado do objeto do julgamento, o discurso político de Gilmar Mendes destoou da posição dos demais ministros e ministras.
“Evidente que não foi o último julgamento, haverá outros julgamentos, por isso também a importância dos povos se manterem atentos, alertas e atuantes no sentido de que continuem se manifestando em defesa de seus direitos. Esse julgamento reforçou o direito dos povos às suas terras na perspectiva do direito originário, e não o direito restrito como a tese do marco temporal tenta fazer valer”, afirma Buzatto.
Vigília conjunta iniciou na noite de terça (15) e durou até a manhã do julgamento. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi
Ação quilombola
Os quilombolas uniram-se aos indígenas na vigília que teve início ontem, na Praça dos Três Poderes, e também estavam mobilizados em defesa de seus direitos. A votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, que pretende declarar inconstitucional o decreto que regulamenta a titulação de terras quilombolas, também foi adiada.
O Ministro Dias Toffoli, que estava com o voto vistas e iria devolver o processo hoje, não pôde comparecer à sessão, pois estava doente. Assim como no caso da ACO 469, não há previsão de nova data para julgamento.