Ao ocupar posições representativas e administrativas importantes dentro do Estado, movimento indígena e apoiadores encaram a possibilidade de uma maior participação capaz de romper com a política colonialista
Em seus primeiros 90 dias, a política indigenista do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi marcada por inovações, transformações e ineditismos. Ainda sem dados para avaliar o alcance destas ações na efetivação dos direitos garantidos na Constituição, seus impactos são percebidos no campo simbólico e em uma maior participação de lideranças indígenas em pastas do executivo.
Eleita deputada federal pelo estado de São Paulo com mais de 150 mil votos, a professora e líder do movimento indígena Sonia Bone de Sousa Silva Santos, conhecida como Sonia Guajajara (PSOL), foi escolhida para chefiar o inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI). A pasta é uma conquista histórica de um movimento que criou suas primeiras entidades representativas durante a Ditadura Militar na década de 1970, quando reuniões e organizações interétnicas eram proibidas por lei.
A reivindicação pela criação de um Ministério dos Povos Indígenas é antiga, surgiu pela primeira vez dentro do movimento indígena em 1979, durante um encontro de lideranças realizado no centro de formação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Goiânia. Quatro anos depois, em 1983, o deputado indígena Mário Juruna (PDT) chegou a sugerir a criação da pasta ao presidente ditador João Figueiredo, que negou qualquer possibilidade de atender a demanda.
Quarenta anos após a negativa do ditador Figueiredo a Juruna, Sonia destacou em seu discurso de posse do novo ministério os objetivos de sua gestão e a mudança de perfil ideológico na condução. “É urgente promover uma cidadania indígena efetiva. Isso não se faz sem demarcação de territórios, proteção e gestão ambiental e territorial, acesso à educação. Acesso e permanência na universidade pública gratuita e de qualidade, ampla cobertura e acesso à saúde integral. Saibam que este ministério chega comprometido com tudo isso e com a promoção de uma política indígena, não mais uma política indigenista, em todo território nacional com potencial de fazer frente às mazelas que tomaram nossos corpos, memórias e vidas”.
As ideias propostas por Sonia de uma “cidadania indígena efetiva” e de uma “política indígena” indicam novas bases na gestão das políticas públicas destinadas aos povos originários, se contrapondo às práticas tutelares a assimilacionistas estabelecidas pelo Estado desde a criação do primeiro órgão indigenista brasileiro. O antropólogo e professor doutor da Universidade de Brasília (UnB), Gersem José de Souza Baniwa, enxerga na conjuntura atual a oportunidade para a ruptura destas práticas. “Sem dúvida é um momento alto, importante e histórico nestes 522 anos de Brasil. Quinhentos e vinte e dois anos de desencontros e de encontros trágicos, com milhares de mortes de línguas, de culturas, e de povos inteiros, pessoas humanas. É muito importante esse reencontro do Brasil consigo mesmo, com sua história”.
Do SPI a Funai
No início do século XX, a expansão da fronteira agrícola em Santa Catarina criava graves conflitos no sul do país entre fazendeiros e comunidades indígenas, especialmente os Kaingang. Métodos como sequestros e extermínios realizados pelos chamados bugreiros
eram utilizados para expulsar as famílias Kaingang de suas aldeias.
Levados ao Congresso brasileiro, legisladores eugenistas mais radicais opinavam sobre esses conflitos que, devido à necessidade de desenvolvimento das regiões mais inóspitas, seria “conveniente usar as mesmas táticas de extermínio que os militares americanos praticaram contra os índios na ocupação de quase toda a América do Norte”, conforme descreve o antropólogo Shelton H. Davis no livro “Vítimas do Milagre – o Desenvolvimento e os Índios do Brasil”.
Mapas mostram a invasão ao território Kaingang Nonoai. Em vermelho a terra ocupada pelos indígenas, em amarelo a área grilada e, em verde, a reserva de floresta. Fonte: gráfico do filme Terra dos Índios, de Zelito Viana (1979).
Assim, em 1910, durante o governo do presidente Nilo Peçanha, foi criado o primeiro órgão oficial indigenista, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Sob responsabilidade do Marechal Cândido Rondon, o SPI tinha como principal tarefa pacificar os índios. Entretanto, o professor de História das Sociedades Indígenas na América Latina na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Clóvis Antônio Brigathi, entende que essa pacificação tinha como objetivos o esbulho e a posse das terras indígenas. “As primeiras ações do SPI, na década de 1910, eram as pacificações, que se aplicavam aos povos que se rebelavam contra as invasões de seus territórios, para confiná-los em pequenas reservas. Essa era a pacificação”.
Entre os objetivos oficiais registrados na fundação do SPI estavam: “estabelecer formas de convivência pacífica com os índios; estimular os índios a adotarem gradualmente hábitos civilizados; influir amistosamente na vida indígena; possibilitar o acesso e a produção de bens econômicos nas terras dos índios; empregar a força de trabalho indígena no aumento da produtividade agrícola; fortalecer as iniciativas cívicas e o sentimento indígena de pertencer à nação brasileira”.
Paralelo às ações do SPI, o Código Civil brasileiro, de 1916, estabeleceu a primeira “Lei de Tutela”, que classificava os povos indígenas e seus cidadãos como “relativamente incapazes”, e que, por isso, deveriam ser tutelados por um órgão indigenista estatal, perspectiva que vigorou por mais de 70 anos.
Em sua tese de doutorado “O movimento indígena no Oeste Catarinense e sua relação com a Igreja Católica na diocese de Chapecó/SC nas décadas de 1970 e 1980”, Brigathi explica que os órgãos indigenistas jamais fiscalizaram ou tomaram providências contra os invasores. Ao contrário, desde a década de 1940, foram facilitadores do arrendamento das áreas. Documentos levantados pelo historiador confirmam uma contínua situação de esbulho patrocinada pela Funai entre os povos do sul do país. Além de ilegal, a exploração ocorria contrária à vontade das comunidades e a justificativa do órgão indigenista se baseava obtenção de recursos para o seu funcionamento.
Somente na Constituição de 1988, o artigo 231 passa a reconhecer aos povos indígenas o direito à “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
A política indígena
A Lei da Tutela, que esteve em vigência até 1988, impunha aos povos indígenas a proibição da criação de suas organizações interétnicas. Mesmo assim, na década de 1970, diante da forte pressão e dos ataques da ditadura por meio de seus projetos desenvolvimentistas, lideranças de diversos povos e de diferentes regiões passaram a reconhecer a necessidade de união contra as ameaças em comum sobre seus territórios.
Foi a partir dessa leitura, e com apoio de aliados que, em 1974, no município de Diamantino (MT), nasceu a Assembleia dos Chefes Indígenas (ACI). Em seu primeiro encontro, a ACI reuniu representantes de 16 povos. As ACI´s ocorreram até o ano de 1980, quando foram substituídas por novas organizações indígenas regionais e nacionais.
Das primeiras assembléias da primeira organização representativa do movimento indígena até a posse de uma representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) como ministra, passaram-se 49 anos. Gersem Baniwa, liderança histórica e importante dentro do movimento indígena, avalia essa trajetória como um caminho de aprendizado. “Os povos indígenas, a partir da trágica experiência com a ditadura, quando milhares de indígenas foram mortos, assassinados, aprenderam que em primeiro lugar era importante domesticar as forças do Estado. E essa domesticação deveria passar sobretudo pela própria participação e diálogo com os agentes do Estado”.
Concordando com antropólogo, Brigathi também avalia “a chegada de indígenas na condução da política indigenista” como um momento histórico. Mas entende também que se colocam grandes desafios políticos. “Embora sejam espaços importantes da política indigenista, são espaços do poder do Estado brasileiro e essas instituições têm suas amarras em seus funcionamentos”, avalia.
Brigathi ressalta que, de dentro do Estado, estas lideranças do movimento indígena enfrentarão “as dificuldades legais, políticas e financeiras que são inerentes ao próprio Estado, que são inerentes à própria democracia”. Além disso, as grandes obras seguem como ponto sensível no debate sobre a autonomia dos povos indígenas em seus territórios. “Existe bastante receio que as coisas voltem a acontecer como aconteceu em Belo Monte, A gente espera que não”, opina o historiador.
Gersem Baniwa prevê para os próximos anos momentos de experiência onde “haverão tensões e antagonismos paradoxais, porque o movimento indígena continuará sendo livre, autônomo e independente de qualquer estrutura de Estado. Mesmo que seus membros estejam nas direções dessas instituições de governo”.
Outra Funai
Quando era deputada federal, a advogada Joenia Wapixana (Rede) teve seu projeto de lei de mudança de nome do Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas aprovado no Congresso Nacional, mas vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL).
O projeto visava desestigmatizar o termo “índio”, que é pejorativo e foi dado pelo colonizador. Substituí-lo por “povos indígenas” valoriza e dá visibilidade à diversidade de povos indígenas existentes no país. Por nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública justificou o veto de Bolsonaro alegando que a expressão ‘Dos Índios’ seria um “termo consagrado no ordenamento e na cultura pátrias, não havendo fundamentos robustos para sua revisão”.
Ao assumir como primeira presidenta indígena da Fundação Nacional do Povos Indígenas, Joenia tornou a troca de nome do órgão indigenista oficial um símbolo de virada de página, de um governo denunciado pelo movimento indigena por genocídio no Tribunal Penal de Internacional de Haia. ˜Era um governo fascista que negava aos povos indígenas seus direitos e está sendo denunciado na ONU por genocídio. Quando eu estive no parlamento, diversas vezes nós denunciamos o que está acontecendo. A questão Yanomami, a contaminação por mercúrio, morte por malária, desvio de remédio”, lembrou Joenia em seu discurso de posse.
“No último governo, tínhamos um policial na condução da política da Funai. O governo, basicamente militar, de Jair Bolsonaro retomou a cultura, a tradição genocida do período ditatorial que visava o massacre deliberado dos povos indígenas”, diz Gersem reforçando o discurso de Joenia.
“A mudança do nome representa este salto de reconhecimento, deste lugar importante dos povos indígenas na história e na constituição da sociedade brasileira. Como partícipes, membros ativos e relevantes do ponto de vista cultural, econômico, moral dos povos indígenas”, emenda Gersem.
No mesmo sentido, Brigathi entende que as mudanças na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – órgão criado durante a ditadura militar – vão além da troca de nome. “A Funai, ainda hoje, carrega o fardo do militarismo, e a gente pode ver isso nas práticas tutelares. A forma tutelar como o Estado trata os povos indígenas”, avalia.
Conquista do Movimento Indígena
Ao finalizar a cerimônia de posse no Ministério dos Povos Indígenas, Sonia concluiu seu discurso citando o comunicado “¡Nunca más un mundo sin nosotros!”, anunciado pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, em julho de 1997, após o segundo Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra ol Neoliberalismo.
“Não será fácil superar 522 anos em quatro, mas estamos dispostos a fazer deste momento a grande retomada da força ancestral da alma e espíritos brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós”, enfatizou a ministra.
“Essa não é uma conquista casual ou mágica, mas resultado de uma longa história de lutas, resistências e crença dos povos indígenas de que seria possível, um dia, serem reconhecidos com suas histórias, culturas, tradições e como sujeitos de direitos e cidadãos plenos”, arremata Gersem.
Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.