“Foi um período muito triste, um momento a ser esquecido. Mas não há como, as marcas desse processo de destruição, ou de tentativa de destruição, ainda estão muito presentes em nosso povo. Principalmente diante da atual conjuntura, sobretudo política, onde a gente vê um regresso a esse período tão truculento e bruto aos povos indígenas”. Nessas palavras, Geovani Krenak, liderança Krenak e vereador de Resplendor (MG), descreveu as memórias que seu povo ainda guarda do drástico período da ditadura militar.
Segundo Geovani, o povo Krenak chegou à beira da “extinção” nessa época: crianças, mulheres, homens e anciãos foram brutalmente torturados e assassinados por militares. Entre 1969 e 1972, eles foram levados à força para o reformatório Krenak e, posteriormente, para a Fazenda Guarani – que o sucedeu –, ambos em Minas Gerais. Esses “campos de concentração” foram criados pelo Estado brasileiro para confinar indígenas de todas as regiões do país e, assim, facilitar o esbulho das terras indígenas (TI’s).
De acordo com o capítulo Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) , o general Oscar Geronymo Bandeira de Melo, presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 1970 e 1974, é apontado como criador do reformatório Krenak. O documento apresenta o general como responsável por manter o local como “instalação prisional pela Funai e local de tortura, morte e desaparecimento forçado de indígenas”.
Apesar de não aparecer na lista dos autores de violações ocorridas no reformatório Krenak, no relatório final da CNV – o que foi muito criticado pelos defensores dos direitos humanos –, Manoel Pinheiro, capitão da Polícia Militar de Minas Gerais, é citado em um trecho do relatório como responsável direto pelo espaço. Além disso, Pinheiro foi um dos militares que comandaram indígenas recrutados para a Guarda Rural Indígena (Grin), unidade que foi treinada em técnicas de repressão e tortura.
“Meu avô foi levado amarrado em um vagão de minério da Vale para Itabira (MG). De lá, seguiu para morrer no exílio, onde prenderam grande parte do meu povo”
No documento da CNV, também é possível encontrar informações sobre as detenções ilegais feitas à época, denunciadas no Tribunal Russel II. O tribunal foi criado, na década de 1970, com o objetivo de analisar denúncias e provas de crimes cometidos pelas ditaduras na América Latina. Entre os materiais estudados, estavam os depoimentos do povo Krenak e também os de outras etnias.
“(…) Com base na documentação reunida [a CNV] reconhece, no Reformatório Krenak e na Fazenda Guarani (que o sucedeu), a sua abrangência nacional quanto à função de prisão de índios rebeldes, encarcerando indígenas de 23 etnias. Ademais, especificamente para a população Krenak, obrigada a viver sob as mesmas condições de índios presos em suas terras, o reformatório assume um caráter de ‘campo de concentração’, conforme denunciado no Tribunal Russel II, ou ‘prisão domiciliar’, como descrito no caso Aikewara. Os indícios levantados relacionam esse reformatório aos centros de tortura, e portanto, as investigações deverão ser aprofundadas pelo Estado brasileiro”, afirma um trecho do relatório.
Além das denúncias feitas no Tribunal Russel II, somam-se ao relatório da CNV informações levantadas em outras pesquisas relacionadas à temática, como o estudo A Ordem a se Preservar, do pesquisador José Gabriel Silveira Corrêa. Por meio de documentos disponibilizados no arquivo do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – atual Funai –, Corrêa identificou o nome de 121 presos entre 1969 e 1979 no reformatório Krenak e na Fazenda Guarani. Alguns foram detidos mais de uma vez.
De acordo com levantamento feito pelo pesquisador, foram identificados pelo nome: 22 Karajá, 17 Terena, 13 Maxacali, 11 Pataxó, nove Krenak, oito Kadiwey, oito Xerente, seis Kaiowá, quatro Bororo, três Krahô, três Guarani, dois Pankaruru, dois Guajajara, dois Canela, dois Fulniô e um Kaingang, Urubu, Campa, Xavante, Xakriabá, Tupiniquim, Sateré-Mawé, Javé, além de um não identificado. No entanto, o número de indígenas presos no período da ditadura militar pode ter sido maior.
Uma das vítimas dos militares foi o avô de Geovani Krenak, retirado à força de seu território, próximo à Resplendor (MG). “Meu avô foi levado amarrado em um vagão de minério da Vale [mineradora] para Itabira (MG). De lá, seguiu para morrer no exílio [reformatório Krenak, seguido da Fazenda Guarani], onde prenderam grande parte do meu povo”, lamentou Geovani.
“Essa decisão é muito importante para reafirmar as consequências da ditadura militar para os povos indígenas. Ela tem um valor histórico muito grande, porque reforça como os povos indígenas foram atingidos neste período, o que, muitas vezes, é esquecido”
Em entrevista ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ele também falou sobre a violência sofrida pelo seu pai nessa mesma época, quando tinha apenas 12 anos de idade. “Meu pai foi amarrado num rabo de cavalo e arrastado pela aldeia pelo simples fato de não querer ir para a escola, porque o nosso povo gostava mesmo de ficar no rio, pescando e nadando. Isso foi uma forma de os militares se imporem. Toda vez que meu pai rememorava essa história, ficava muito revoltado e emocionado”, recordou.
Saiba mais sobre a Fazenda Guarani e o Reformatório Krenak no dossiê da Caci: O campo de concentração de índios de Minas Gerais
Decisão judicial
No dia 13 de setembro deste ano, a juíza Anna Cristina Rocha Gonçalves, da 14ª Vara Federal de Minas Gerais, em ação civil pública interposta pelo Ministério Público Federal (MPF), condenou a União, o estado de Minas Gerais e a Funai pela “prática de atos de violações de direitos dos povos”.
De acordo com a decisão, a União, o governo de Minas Gerais e a Funai terão que realizar, em um prazo de seis meses, “após consulta prévia às lideranças indígenas Krenak, cerimônia pública, com a presença de representantes das entidades rés, em nível federal e estadual, na qual serão reconhecidas as graves violações de direitos dos povos indígenas, seguida de pedido público de desculpas ao povo Krenak, com ampla divulgação junto aos meios de comunicação e canais oficiais das entidades rés”.
A Justiça também determinou que a Funai conclua o processo administrativo de delimitação da Terra Indígena (TI) Sete Salões (MG), considerada sagrada pelo povo Krenak. Além disso, a Funai e o governo de Minas Gerais deverão implementar, com a efetiva participação do povo Krenak, “ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, de forma a resgatar e preservar a memória e cultura do referido povo indígena, com a implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena”.
Para a advogada Lethicia Reis, da assessoria jurídica do Cimi, a decisão da juíza é, no geral, “muito boa”. “A sentença tem duas questões muito importantes. A primeira diz respeito ao direito à memória, entender a necessidade de reparar as violações cometidas aos povos indígenas de todo o país, porque o reformatório recebeu povos das cinco regiões do Brasil. E a segunda é que a Justiça determinou a demarcação da TI Sete Salões, área sagrada para o povo Krenak, e que eles lutam há muito tempo para conquistá-la de volta”, explicou.
“Essa decisão é muito importante para reafirmar as consequências da ditadura militar para os povos indígenas. Ela tem um valor histórico muito grande, porque reforça como os povos indígenas foram atingidos neste período, o que, muitas vezes, é esquecido”, lembrou a advogada.
TI Sete Salões X marco temporal
Considerada sagrada para o povo Krenak, a TI Sete Salões é uma área que ainda precisa ser demarcada. Apesar de o povo ter conquistado a demarcação de uma parte de seu território de ocupação tradicional, essa área ainda não foi inclusa e é reivindicada há anos pelos indígenas.
Atualmente, o povo Krenak possui apenas uma pequena área de 4 mil hectares regularizada pelo Estado, a TI Krenak, também em Resplendor (MG). Esta demarcação decorre de uma área reservada ainda na época do SPI, parte da política de redução e confinamento dos povos indígenas em pequenas reservas, como ocorreu em outros estados do país.
“A demarcação da TI Sete Salões, do território sagrado do povo Krenak, é um direito nosso. É nesse território que estão enterrados os principais líderes do nosso povo”
“A demarcação da TI Sete Salões, do território sagrado do povo Krenak, é um direito nosso. É nesse território que estão enterrados os principais líderes do nosso povo. É lá que estão os locais sagrados, como a gruta dos Sete Salões e a Pedra da Pintura, onde fazemos nossos rituais de fortalecimento”, desabafou Geovani Krenak.
De acordo com o texto da decisão, a Funai deverá “estabelecer ações de reparação ambiental das terras degradas pertencentes aos Krenak, sem prejuízo da participação em medidas reparatórias que constem do acordo da União com as empresas Vale e Samarco e que tenham atingido os limites do território indígena”.
“Com as reparações ambientais”, explica Lethicia, “acontecerão novas manifestações religiosas e culturais, além da proteção efetiva do território. Ainda tem a questão de que a TI Sete Salões é uma reserva ambiental, um parque, e a juíza reconhece que são coisas diferentes. O local pode continuar sendo uma Unidade de Conservação (UC), mas tem que ser demarcada enquanto terra indígena”.
A advogada frisou, ainda, que essa decisão é apresentada em um período em que a Comissão Nacional da Verdade está “esvaziada”. “Vivemos tempos em que a ditadura militar é festejada pelo governo federal. Então, reconhecer que naquele período existiram violações gravíssimas contra os Krenak e contra outros povos indígenas, é importante para reconhecer a história dos povos indígenas do Brasil”.
A decisão da juíza coincide também com o momento histórico em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julga o marco temporal, tese ruralista que desconsidera os direitos indígenas. A proposta, que é considerada inconstitucional, diz que os povos só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
A tese do marco temporal é defendida por empresários e setores econômicos que têm interesse em utilizar essas áreas para obter lucros por meio de atividades do garimpo, da mineração e do agronegócio.
O julgamento do STF foi suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, no dia 15 de setembro. Antes dele, o ministro relator, Edson Fachin, rechaçou a tese do marco temporal, enquanto o ministro Nunes Marques votou a favor da tese ruralista.
Mas o que o caso dos Krenak tem a ver com o marco temporal? Em seu voto, Nunes Marques reconheceu que a tese do marco temporal propõe “anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, e já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica”.
A remoção forçada dos Krenak de sua terra, na TI Sete Salões, apesar de ocorrida já no século XX, pode ser um desses “esbulhos ancestrais” anistiados caso a tese do marco temporal seja referendada pela Suprema Corte.
“A sentença da juíza Anna Cristina Gonçalves reconhece que até a Constituição de 1988 os povos indígenas não tinham condições de exercer seus direitos territoriais e culturais, de organização de vida. Ela traz à tona muitas das violações que o povo Krenak sofreu durante esse período e que só é possível ser reparado depois da Constituição. Ela reconhece também que a TI Sete Salões não estava ocupada nessa época justamente em razão de todas essas violências que os Krenak sofreram”, afirmou a advogada.
Mas, independente do resultado do julgamento do STF, Geovani Krenak promete continuar lutando ao lado de seu povo pelos “territórios sagrados”. “Temos o direito de fazer os nossos rituais nesses espaços. Não vemos outra forma de seguir, de fortalecer os nossos espíritos, se não mantermos algo milenar em relação à cultura, tradição e história do povo Krenak. No contrário, virão mais pandemias, mais enchentes e agravamento do clima”.
“Percebemos que esses conflitos ambientais ocorrem, porque não estão respeitando a cultura dos povos indígenas, o espírito da ‘Mãe Terra’. Então, para que haja um equilíbrio do planeta, é necessário que os territórios indígenas sejam demarcados e que a gente volte a praticar os rituais sagrados para manter o equilíbrio do planeta”, completou.
“Desde a criação do reformatório, a gente enxergava o rio como algo que nos protegia, que sempre manteve vivo o povo Krenak, tanto pela questão alimentar quanto pela questão espiritual. Hoje a gente tem medo de algo que sempre nos protegeu”
Portas abertas para novos desastres
A mineradora que cedeu vagões para transportar indígenas para os “campos de concentração” – reformatório Krenak e Fazenda Guarani –, entre eles o avô de Geovani Krenak, é a mesma que cometeu a maior catástrofe socioambiental do Brasil, no município mineiro de Mariana. No dia 5 de novembro de 2015, a barragem do Fundão, da empresa Samarco, de posse das mineradoras Vale e BHP Billiton, foi rompida.
Apesar de saber da gravidade de levantar uma barragem na região, sem medidas eficazes de prevenção e consultas públicas, as mineradoras arriscaram e, criminosamente, afundaram lama abaixo a vida das pessoas, o Rio Doce (MG), os animais e toda a vegetação local. Quase seis anos após o crime, os responsáveis pela tragédia seguem impunes e ainda há reparos sociais e ambientais em pendência.
Desde que ocorreu a catástrofe, os Krenak não têm mais nenhuma relação com o Uatu, como é chamado o Rio Doce pelo povo. “Como se não bastassem as mortes que aconteceram ao longo desse contato de enfrentamento com a implementação dessa empresa, ainda tem as questões ambiental, espiritual, cultural e cosmológica do povo Krenak. Desde a criação do reformatório, a gente enxergava o rio como algo que nos protegia, que sempre manteve vivo o povo Krenak, tanto pela questão alimentar quanto pela questão espiritual. Hoje a gente tem medo de algo que sempre nos protegeu”, disse Geovani.
Ao replicar o repertório de ruralistas e defensores do agronegócio, em seu voto no caso de repercussão geral do STF, o ministro Nunes Marques propõe anistiar todo o processo histórico de violência contra os povos indígenas e, assim, permite a abertura de portas para novos desastres socioambientais, como o da barragem do Fundão.
“Essa questão de como o rompimento pode se relacionar com o marco temporal vem no sentido primeiro do cuidado da posse sustentável que as comunidades indígenas têm em seus territórios. Estamos em um momento da mineração em que os territórios tradicionais são vistos como a última fronteira mineral, porque a área onde a mineração existe há um tempo já está desgastada e não produz mais minérios como antigamente. E onde falta explorar é justamente onde há terras indígenas e territórios tradicionais”, explica a advogada Lethicia.
“Garantir a posse e o usufruto indígena de uma área dificulta que ali se instale um empreendimento irresponsável em relação ao meio ambiente, aos povos indígenas, aos trabalhadores e às pessoas que vivem ao redor. Por isso, a necessidade de garantir os territórios indígenas também é uma forma de garantir que aqueles empreendimentos serão feitos com mais cuidado, que é justamente o que não aconteceu no caso do rompimento do Rio Doce”, concluiu.
Infelizmente, até hoje as comunidades locais, como os próprios Krenak, são atingidas pelos impactos dessa tragédia. À nossa equipe, Geovani afirmou que o povo Krenak ainda sente dificuldade para manter “questões mínimas”, como a água, a alimentação e até mesmo financeira, já que dependiam dos peixes do rio para garantir uma estabilidade financeira.
No entanto, a liderança disse que o maior problema é não poder mais se relacionar com o “Uatu” como antigamente. “Sem sombra de dúvidas, o pior é não poder praticar os rituais sagrados. Esse é, de longe, o pior enfrentamento do povo Krenak. O ritual sagrado mantém não só o equilíbrio da nossa comunidade. A gente acreditava que mantinha o equilíbrio no universo. Era assim que víamos os rituais sagrados que ocorriam nas águas do Uatu”.