Quilombos precisam ser vistos como questão agrária mais ampla, diz historiador

26/03/2023

Tayguara Ribeiro

Para Flávio Gomes, reconhecimento dessas comunidades significa repensar a estrutura fundiária brasileira

“A questão agrária é um tema do Brasil, concorda? Por que o quilombo não seria um tema do país?” O argumento é levantado pelo historiador Flávio Gomes, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Segundo ele, o quilombo é tratado, muitas vezes, como se fosse um tema apenas das pessoas negras.

“Talvez o grande desafio seja entender essas formações camponesas quilombolas do interior como uma questão agrária mais ampla, que não é só uma questão dos quilombolas, é uma questão da sociedade brasileira como um todo.”

Vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção de 2022, Flávio Gomes é um dos principais pesquisadores sobre as comunidades quilombolas do país.

Historiador e escritor Flávio Gomes, um dos principais especialistas em quilombos do país – Eduardo Anizelli – 2.fev.23/Folhapress

Ele é autor de livros como ”Histórias Quilombolas”, “Experiências Atlânticas”, “Mocambos e Quilombos” e “Negros e Política”. Organizou ainda “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, em parceria com a também historiadora Lilia Moritz Schwarcz.

“O Estado tem dificuldade de reconhecer as questões que atravessam as dimensões raciais. Os quilombolas não são só descendentes de ex-escravizados. Os quilombolas são negros. Eles não são só sem-terra, são negros. Isso gera uma certa dificuldade do Estado, dos governos e da sociedade brasileira.”

Há ainda, segundo Gomes, uma ideia naturalizada de que o quilombo é um resto do passado escondido no rincão, onde se professa uma religião folclórica e se bate tambor.

“O reconhecimento dessas comunidades significaria um repensar sobre a estrutura fundiária”, diz.

Os quilombolas enfrentam dificuldades para obter titulação de terra. Esse é um legado ainda do período escravocrata do Brasil ou há outras questões envolvidas? É importante, para entender o passado e o presente também, [entender] que o quilombo é uma formação camponesa. Uma coisa em relação ao reconhecimento é identificar o quanto os movimentos sociais foram importantes nessa ampliação do número de comunidades negras rurais quilombolas.

Você tem uma pressão do mundo agrário brasileiro, grandes fazendeiros. Mas não é só do agronegócio. Inclusive, tem partes dos quilombos hoje que estão em terras públicas. O Estado brasileiro teria que ter uma compreensão. O reconhecimento dessas comunidades significaria um repensar sobre a estrutura fundiária.

Então, mesmo o governo Lula lá no início teve dificuldade [para conceder titulação]. A coisa ampliou muito mais no segundo mandato. O Estado tem dificuldade de reconhecer as questões que atravessam as dimensões raciais. Os quilombolas não são só descendentes de ex-escravizados. Os quilombolas são negros. Eles não são só sem-terra, são negros. Isso gera certa dificuldade do Estado, dos governos, e da sociedade brasileira. Há ainda, infelizmente, uma ideia naturalizada de que o quilombo é um resto do passado escondido no rincão, onde se professa uma religião folclórica, bate tambor. Não é isso.

O Estado tem dificuldade de reconhecer as questões que atravessam as dimensões raciais. Os quilombolas não são só descendentes de ex-escravizados. Os quilombolas são negros

O Brasil nos últimos anos implementou algumas políticas afirmativas visando a população negra. Seria importante pensar ações do gênero especificamente para os quilombolas? Na verdade, existe dificuldade de estabelecer uma política pública que seja universal e, ao mesmo tempo, reconheça as diferenças raciais. É uma dificuldade da sociedade brasileira reconhecer isso.

Existem políticas públicas para comunidades camponesas no Brasil —você tem políticas públicas para crédito agrícola—, mas é fundamental reconhecer que dentro dessa dimensão camponesa, rural, há uma dimensão específica que são as comunidades remanescentes.

Há ainda, infelizmente, uma ideia naturalizada de que o quilombo é um resto do passado escondido no rincão, onde se professa uma religião folclórica, bate um tambor. Não é isso

Quilombos se formaram apenas a partir de pessoas fugindo da escravidão ou existiu a formação posterior a esse período? É uma definição ampliada [formação dos quilombos pós-período colonial]. A base camponesa significa a capacidade de interação dessas comunidades com o ecossistema. Mesmo durante o tempo da escravidão, os quilombos não eram isolados.

Qual é a imagem do passado e do presente? O quilombo como um lugar muito distante para chegar, escondido, com uma cultura toda própria. Isso, de alguma maneira, folcloriza, estigmatiza essas comunidades. Estudos têm demonstrado que o quilombo e a senzala se conectavam o tempo todo. Qual é a imagem um tanto quanto clássica e estigmatizante? Ou a pessoa fica na senzala ou foge para o quilombo.

A dieta alimentar entre quilombolas e pessoas nas senzalas era complementar. Sal se conseguia na senzala. Os quilombolas caçavam. Eles poderiam trocar carne por sal, por exemplo.

Isso é interessante porque, quando acaba a escravidão, essas formações camponesas ampliadas se deslocam. Então, você pode falar de comunidades que se desdobram, repercutem já no período da abolição. Elas são em parte aqueles quilombos históricos do passado e, ao mesmo tempo, uma ampliação dessas trocas camponesas.

A influência que a população negra teve na formação do Brasil é evidente, mas qual o papel específico das comunidades quilombolas? É meio paradoxal. Essas comunidades eram originais do ponto de vista da cultura étnica, cultura religiosa, o trato com território. Ao mesmo tempo elas são comuns. Às vezes, é visto como espécie de uma armadilha para o reconhecimento. É que, talvez, hoje você não conseguisse distinguir em comunidades negras rurais qual é remanescente de quilombo. Isso tem sido usado pelos inimigos do quilombo.

Essas comunidades têm suas identidades que são territoriais, comunitárias, com base no parentesco, em uma base cultural das mais diversas. Você não pode achar que todo quilombola é uma pessoa que fugiu da escravidão. Tem gente que nasceu no próprio quilombo. E teve uma experiência de liberdade, já no período colonial. Existem muitas especificidades, mas é importante tomar cuidado para não ficar restrito a uma dimensão folclórica.

Eu faço até uma brincadeira. O som cultural do quilombo [no geral] não é o som do Olodum. É o som do Pena Branca e Xavantinho. São dois cantores do interior de Minas Gerais, negros, que faziam uma música completamente original, tal qual a música do Olodum, que é de Salvador. É o som do quilombo. São dois caras do interior, de áreas agrárias, rurais.

Na verdade, a existência dos quilombos ameaçava a escravidão, como eu avalio que a existência das comunidades hoje rurais coloca em xeque um modelo de capitalismo

Qual papel a formação dos quilombos teve no processo de deterioração do sistema escravocrata no Brasil? Existem quilombos no Brasil desde os primeiros tempos de escravidão. Estamos falando de meados do século 16. As primeiras notícias sobre quilombos no Brasil ou na experiência colonial datam de 1570. Antes de Palmares.

Onde havia quilombo, como comunidade fugitiva, havia ameaça à escravidão. Não que os quilombos tivessem um projeto de acabar com a escravidão. Na medida em que fugiam escravizados, formavam comunidades, ameaçavam fazendeiros, eram influência para mais fugas.

Na verdade, a existência dos quilombos ameaçava a escravidão, como eu avalio que a existência das comunidades hoje rurais coloca em xeque um modelo de capitalismo, na medida em que você tem comunidades negras, com acesso à terra, com economia extrativista, com manejo.

Como eram os quilombos no período colonial? As informações produzidas sobre quilombos foram feitas por quem queria destruí-los. Nós sabemos pouco sobre os quilombolas a partir dos próprios quilombolas. Nós não sabemos como eles próprios se viam.

Os maiores quilombos do Brasil foram Palmares, alguns grandes em Minas Gerais, como o do Ambrósio, e alguns também em Mato Grosso, como do Qualitere ou o da Carlota. Foram locais que chegaram a ter milhares de habitantes. Mas via de regra essas comunidades foram menores, de 40, 50 famílias. É como são hoje as comunidades rurais.

Qual é a melhor forma de definirmos o que é um quilombo? Quilombo é uma experiência camponesa negra da diáspora, da escravidão. Essa presença negra está vinculada à experiência da escravidão atlântica africana.

Há indicações de índios presentes em quilombos. Havia uma tensão colonial. Quando se avançava para destruir um quilombo, se avançava em territórios ocupados por indígenas.

Os indígenas consideravam que a experiência de existir um quilombo nas suas terras significava trazer a repressão, então, não foi um mar de harmonia no passado entre indígenas e quilombolas. Hoje é diferente.

Muitos quilombos viram a formação de cidades no seu entorno. Como o sr. vê a experiência desses quilombos urbanos? Existe uma dimensão histórica interessante. Os quilombolas ficavam nas periferias. No caso dos cariocas, é uma cidade cercada de morro. Não é que os quilombolas estivessem só nos morros —essa é uma visão equivocada—, mas estavam nas periferias.

As principais cidades do Brasil na época da escravidão eram Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Os quilombos se formavam ali. Mas tem um outro fenômeno que é a migração de populações rurais para áreas urbanas, vinculada a uma experiência da pós-abolição.

Eu poderia dizer que a experiência de juventude da [escritora] Carolina de Jesus foi uma experiência negra, em uma grande cidade como São Paulo, do pós-abolição. Tem ali uma fronteira borrada dessa experiência negra com a experiência da pós-abolição, com a experiência do quilombo do passado.

Carolina mesma era uma migrante das regiões de Minas Gerais, neta de escravizados, convivendo com pessoas que poderiam ser netas de quilombolas. O que era a comunidade do Canindé onde ela morava? Ali, no limite, a cidade avançando em direção a essa experiência periférica e a periferia invadindo a cidade. E a população negra na periferia, parte da qual descendente de população rural negra.

No Rio de Janeiro, você tem o quilombo do Sacopã, na Lagoa [Rodrigo de Freitas]. A Pedra do Sal. É uma fronteira borrada, uma dimensão que eu acho que é quilombola também, mas é o que a gente chamaria de uma ressemantização, de como essa experiência da fuga do passado do escravizado se transforma também na migração de população negra no pós-abolição. Se mistura completamente.

Não tem um exame de sangue para separar quem era um quilombola verdadeiro do passado colonial e quem é a população negra rural que está migrando no pós-abolição.

Como avalia a forma que o tema dos quilombos é ensinado no Brasil? Houve um movimento muito importante, que coincide com os dois primeiros mandatos do Lula, que é a criação da Lei 10.639 para o ensino de história da África e dos descendentes de africanos no Brasil.

Depois o Conselho Federal de Educação faz um plano para educação quilombola. Hoje o Estado brasileiro tem uma regulamentação para educação quilombola. Eu vejo como avanço, embora a gente saiba que mesmo em grandes cidades não tem educação para todo mundo.

A questão agrária é um tema do Brasil, concorda? Por que que o quilombo não seria um tema do país? O quilombo é tratado como um tema dos negros apenas. Talvez o grande desafio seja entender essas formações camponesas quilombolas do interior como uma questão agrária mais ampla, que não é só uma questão dos quilombolas, é uma questão da sociedade brasileira como um todo.

RAIO-X

Flávio Gomes, 59Doutor em História, é professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de livros como ”Histórias Quilombolas”; “A Hidra e os Pântanos”; “Experiências Atlânticas”, “Mocambos e Quilombos”; “Negros e Política”. Co-organizador do livro “Dicionário da Escravidão e Liberdade” e vencedor do Prêmio Jabuti de não ficção de 2022.

Print Friendly, PDF & Email