Em Brumadinho (MG) – município pequeno cujo nome circulou o mundo depois do rompimento da barragem da Vale S.A que matou 270 pessoas em 2019 -, uma área cobiçada pela mesma mineradora, e também por uma construtora, foi ocupada em 23 de outubro por indígenas Kamakã Mongoió.
A retomada (ou seja, a terra que foi ocupada novamente pelos povos cuja ocupação era originária, a primeira de que se tem conhecimento) fica na região do Córrego de Areia e leva o mesmo nome do povo indígena que a organiza. É uma das mais recentes retomadas entre muitas que se espalham pelo país.
Não se equivocaria quem dissesse que o ano de 2021 está sendo marcado pela intensificação dos ataques aos povos originários no Brasil. O garimpo avança na Amazônia; relatório do CIMI revela um crescimento de 61% de assassinatos de indígenas só no último ano; e os processos demarcatórios estão paralisados pelo governo Bolsonaro.
“Mesmo quando ganhamos na justiça, não significa que aquilo vai ser resolvido”. A fala é do cacique Babau Tupinambá, da Aldeia Serra do Padeiro da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, do sul da Bahia. A liderança toma como exemplo a situação vivida pelos povos Yanomami e Munduruku para fazer uma reflexão mais ampla sobre o que os povos indígenas podem esperar das instâncias estatais.
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Em maio deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Barroso determinou que o governo retire “imediatamente” invasores garimpeiros de sete TIs da região amazônica. Como demonstram as seguidas denúncias da Hutukara Associação Yanomami (HAY), a decisão do STF vem sendo ignorada pelo governo federal. “Quando as decisões judiciais são contra nós, eles vêm com tudo. Quando é favorável, é muito difícil que executem”, resume Babau.
Além disso, iniciativas de retiradas de direitos indígenas circulam pelos corredores de cada um dos três poderes institucionais em Brasília. Entre eles, o PL 191/2020, que libera a mineração e a construção de hidrelétricas em terras indígenas e o PL 490/2007, que restringe as demarcações de terras.
Um dos ataques aos povos originários com maior visibilidade no ano, e cuja mobilização contrária levou mais de 6 mil indígenas de todo o país a acamparem por semanas na porta do Supremo, é o Marco Temporal.
Empatado por um a um, o julgamento do Marco Temporal – que, se aprovado, limitará o reconhecimento de terras indígenas à comprovação de sua ocupação antes de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal – foi suspenso por tempo indeterminado.
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A despeito do acirramento dos ataques aos povos indígenas, ou talvez por isso mesmo, o retorno a territórios tradicionais também avançam por todo o país. “Se não fizermos retomadas, simplesmente seremos apagados da história desse país chamado Brasil”, afirma Merong Kamakã, uma das lideranças em Brumadinho.
Somente em 2021, em plena pandemia de Coronavírus, há registro de retomadas indígenas em todas as cinco regiões do Brasil.
Sul e Sudeste
No Sul do país, famílias do povo Guarani Mbya retomaram, em 30 de abril, uma área tradicional do tekoha (lugar onde se é) Pindó Poty, que havia sido invadida por brancos, no bairro Lami de Porto Alegre (RS).
De acordo com o Cacique Arnildo Verá, da Aldeia Pindó Mirim Itapuã do Rio Grande do Sul, um estudo antropológico constata que a área de 100 hectares é terra indígena. A demarcação, no entanto, não saiu do papel. O Cacique Arnildo conta que, cansados de esperar e vendo o território ser invadido por não indígenas, “fizemos nosso papel de auto-demarcar”.
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Em maio, uma liminar deferida pela 9ª Vara Federal de Porto Alegre foi favorável à retomada Guarani, proibindo “esbulho ou turbação” por parte de não indígenas na área. “A gente sabe que como muitos juruá [brancos] têm apoio do governo, eles não se intimidam com decisões como essa. Mas nossa movimentação está dando resultado”, conta Arnildo, que é também coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
Ali perto, na cidade de Cachoeirinha (RS), uma área conhecida como Mata do Júlio foi reocupada por outro grupo Guarani Mbya, no dia 17 de setembro.
“O Rio Grande do Sul tem 57 aldeias, mas só 6 estão demarcadas pelo governo federal. A maioria são acampamentos, retomadas”, explica Arnildo: “Não dá para esperar o Estado né?”
Já na região metropolitana de Curitiba, em Piraquara (PR), uma ação conjunta entre cinco povos – Kaingang, Guarani Mbya, Guarani Nhandeva, Tukano e Krahô – retomou um território na Floresta Estadual Metropolitana em 9 de agosto.
Merong Kamakã viveu por uma década no sul do Brasil e participou de retomadas com os Guarani Mbya em Maquiné (RS) em 2017 e com os Xokleng em São Francisco de Paula (RS) em 2020. Mas desde o início da pandemia recebe o chamado para voltar à Minas Gerais e organizar uma retomada com sua família. Foi o que fez.
“Eles ficaram toda a pandemia sem nenhuma assistência. Nem mesmo da SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena], por estarem em contexto urbano, na periferia de Belo Horizonte”, diz. “Foi nesse momento que caiu a ficha. Precisamos voltar para a terra. Porque nós somos a própria terra”, relata Merong.
A Retomada Kamakã Mongoió, descrita por Merong como “um sopro de vida” é composta também, segundo ele, por indígenas das etnias Puri e Kambiwá. “Tenho certeza que o governo não tem uma proposta melhor para nós. A proposta dele é nos dizimar”, avalia: “Então aqui vamos permanecer. Nosso corpo pode servir até de adubo para essa terra, mas daqui a gente não sai”.
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No Sudeste, na mesma cidade de Brumadinho, indígenas Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe retomaram uma área conhecida como Mata do Japonês no dia 9 de junho.
Na região de Itamunheque, em Teófilo Otoni (MG), 400 pessoas do povo Maxakali reocupam, desde 28 de setembro, um território onde pretendem construir uma Aldeia Escola Floresta.
Em Paralheiros, extremo sul da cidade de São Paulo, indígenas Guarani Mbya fizeram, ao longo de 2021, três retomadas de aldeias na Terra Indígena (TI) Tenondé Porã.
Centro-oeste, Nordeste e Norte
No Nordeste, em Alagoas, uma retomada foi feita em 16 de março por 28 famílias Pankaxuri que antes moravam em condições precárias na zona urbana da cidade de Palmeira dos Índios.
De forma similar no Centro-oeste, 56 adultos e 65 crianças Guarani Kaiowá saíram do contexto urbano de Naviraí (MS) e, em 15 de outubro, retornaram ao tekoha Teko-Ava, na Aldeia Borevi-ry.
A professora Guarani Kaiowá Cunhã Poty Rendy conta que na região há três cemitérios indígenas. “É uma alegria o retorno, sentir que os ancestrais estão ali. A anciã mais velha tem 90 anos, ela é a árvore genealógica viva de toda a família que se mantém no local até hoje”, diz.
Segundo Poty Rendy, os Guarani Kaiowá foram retirados do território para o qual agora retornaram em 1973. “A década de 1970 foi de muito desmatamento por aqui”, narra, ao constatar que “o Mato Grosso do Sul é totalmente comandado pela agropecuária”.
De acordo com levantamento feito pelo Instituto Sociambiental (ISA), as áreas privadas no Mato Grosso do Sul ocupam 92% do território. Já as terras indígenas, apenas 2,5%. As grandes fazendas com mais de mil hectares são 83% de todos os imóveis rurais do estado.
No Norte, indígenas do povo Mura organizaram uma retomada no mês de outubro em reação à invasão de áreas da Aldeia São Félix, no município de Autazes, na região metropolitana de Manaus (AM).
O que são retomadas?
Ocupações de terra? Processos por meio dos quais indígenas, coletivamente, recuperam territórios tradicionais que estavam em posse de não indígenas? Estratégia ou instrumento de luta?
“Elas podem ser vistas assim por outros olhares”, explica Karai Tiago dos Santos, liderança Guarani Mbya da TI Tenondé Porã, a respeito do que são retomadas. “Para nós, é o que garante nossa continuidade”.
“Não é que se diga ‘vamos retomar para mostrar para o governo’ ou ‘vamos retomar porque senão vamos perder território’. Para os povos indígenas, retomadas são muito além disso. É o que a gente precisa para continuar em pé nesse mundo”, aponta Karai.
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O retorno às aldeias “dos ancestrais”, afirma Karai, “é uma reconexão. Com os espíritos da mata e da natureza, com o sentido da nossa vida para nós mesmos e para nosso mundo”.
A decisão de retomar, conta Karai Tiago, também coordenador da CGY, não acontece no plano mundano: “Os espíritos dos nossos ancestrais nos guiam. A retomada é feita nessa busca. É muito difícil compreendê-la, mas nós que somos indígenas conseguimos entendê-la perfeitamente”.
Não é o homem branco que nos governa, são nossos encantados
Na TI Tupinambá de Olivença, a segunda maior da Bahia, a concepção é parecida. De acordo com o livro O retorno da terra (Editora Elefante), de Daniela Alarcon, só entre 2004 e 2019 houve na Aldeia Serra do Padeiro 95 áreas retomadas.
“Vemos a retomada como uma oração”, caracteriza o cacique Babau. “Um ritual de recuperar não só a terra, mas a nossa existência. Não nos referimos só ao território, mas a tomar na mão a vida que foi tirada”, expõe.
“Nós, Tupinambá da Serra do Padeiro, já dizemos logo: não é o homem branco que nos governa. Não são vocês que decidem nossas vidas”, sintetiza o cacique Babau: “Nós temos uma cultura ancestral e quem determina o que nós vamos fazer são nossos encantados. Eles é que definem como nós vamos andar”.
“Quando o homem branco não cumpre e temos a decisão espiritual que não devemos esperar, que devemos avançar naquilo que nos é de direito para garantir a existência do nosso povo, agimos”, explica Babau.
521 anos de resistência
Questionado sobre a origem das retomadas, o cacique Tupinambá atesta que “desde que o europeu chegou no Brasil nós nos organizamos em resistência. Essa resistência recebeu diversos nomes ao longo da história”.
Cita, como alguns dos muitos exemplos, a Revolta dos Tamoios contra os portugueses no Vale do Paraíba entre 1554 e 1567 e a Revolta dos Tupinambá em Belém, em 1618.
“No início dos anos 1980, começa a se dar um novo nome à luta, com povos do Nordeste como os Pataxó, Pataxó Hã-hã-hãe, Kiriri: a retomada”, narra Babau. “Estavam dizendo que os indígenas só estavam na Amazônia. E então a gente tem que fazer uma guerra de retomar. Vivemos um estado de guerra. E temos que mostrar que estamos aqui e que não vão nos aniquilar”, afirma o cacique: “Retomar tudo: nossa existência, nossa vida”.
* O levantamento de informações para essa reportagem teve contribuições do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), da CGY (Comissão Guarani Yvyrupa), da APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), da liderança Guarani Nhandeva Leila Rocha e dos antropólogos Daniela Alarcon, Spensy Pimentel e Tatiana Klein.
Edição: Vinícius Segalla