O novo parecer assinado por Temer, chamado de “vinculante”, passa a considerar que indígenas têm direito à terra “desde que a área pretendida estivesse ocupada pelos indígenas na data da promulgação da Constituição Federal”, em outubro de 1988. Esse entendimento jurídico, chamado de “marco temporal”, foi abordado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2009 durante o processo de demarcação da terra indígena Raposa/Serra do Sol e é apoiado atualmente por alguns ministros do STF, mas ainda não passou por decisão do plenário na atual composição do tribunal.
A tese do “marco temporal” tem sido fortemente criticada por várias organizações não governamentais, pois representa a impossibilidade legal de indígenas reivindicarem seus territórios que não estavam por eles ocupados em outubro de 1988. Pelo menos três ações judiciais questionam no STF esse entendimento. Uma turma de ministros, por outro lado, concedeu decisões favoráveis a fazendeiros em disputa com índios.
Segundo as ONGs, a imposição do “marco temporal” para toda a administração contraria o próprio STF sobre a não vinculação da decisão do caso da Raposa e não contempla exceções estabelecidas pelo próprio tribunal, como nos casos de expulsão dos povos indígenas de suas terras.
APOIO PARLAMENTAR
O parecer é assinado por Temer no momento em que ele busca apoio parlamentar no Congresso para escapar de uma denúncia de suposta corrupção feita pela PGR (Procuradoria-Geral da República). A medida é anunciada pela AGU dias depois que o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS), membro da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), distribuiu a produtores rurais na página da FPA em rede social um vídeo, no qual explicou que tal “parecer vinculante” estava sendo discutido diretamente pelos deputados ruralistas com a Casa Civil da Presidência e a advogada-geral da União, Grace Mendonça.
No vídeo, o parlamentar disse que a medida vinha sendo debatida desde a posse de Michel Temer na Presidência, no ano passado. “Ao longo desses meses, nós conversamos com o ministro Alexandre de Moraes, quando ministro da Justiça, com o próprio ministro Osmar Serraglio, que também foi ministro, e por último agora com o ministro Torquato. Da mesma forma com a Advogacia [sic] Geral da União, hoje a ministra Grace, foram várias reuniões. E a última reunião que nós fizemos, ainda em abril, com o ministro Padilha, com o ministro Osmar Serraglio, com a ministra Grace, nós acertamos um parecer vinculante”, diz o deputado, no vídeo.
PROCESSOS ILEGAIS
Heinze também calculou o impacto da medida sobre os processos de demarcação. “Seguramente, na minha avaliação, mais de 90% dos processos que tem no Brasil –são mais de 700 processos; só no Rio Grande do Sul eu tenho 31 processos em andamento– seguramente mais de 90% serão ilegais e portanto serão arquivados. Então primeiro o presidente já se comprometeu com isso de assinar esse parecer vinculante junto com a advogada geral da União, a doutora Grace. É um grande avanço para os produtores brasileiros, que estão ansiados [sic], agoniados, em cima da pressão que fazia a Funai, que fazia o Ministério da Justiça e que agora, com o presidente Michel Temer, uma nova direção para os produtores rurais brasileiros.”
A Folha procurou a AGU ainda na noite de terça-feira (18) para que se manifestasse sobre o vídeo, mas a resposta foi dada em nota oficial publicada pelo site do órgão na internet na noite desta quarta-feira. A Casa Civil havia informado, às 13h15, que o assunto “ainda está [estava] em análise no governo”.
Na nota, a AGU diz que a medida “não inova na ordem jurídica, mas apenas internaliza para a administração pública um entendimento há muito consolidado” no STF, porém logo em seguida afirma: “A novidade do presente ato é a forma jurídica adotada, já que a portaria anteriormente editada pela Advocacia-Geral da União não tinha o condão de vincular todos os órgãos da Administração Pública, enquanto o parecer aprovado, diferentemente, obriga todos os órgãos públicos a lhe dar fiel cumprimento”. Grace Mendonça disse à reportagem que o parecer vai “encerrar o litígio de 748 processos administrativos” em andamento no país e vai “trazer segurança jurídica aos indígenas”.
Segundo a AGU, o parecer recepciona “as diretrizes fixadas pelo STF, que apontam que “o usufruto das terras pelos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional, nem à atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal; permitem a instalação de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte nas terras indígenas; vedam a ampliação da terra indígena já demarcada; não comprometem a administração de unidades de conservação ambiental pelos órgãos federais competentes; proíbem a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte dos índios pela utilização das estradas e demais equipamentos públicos localizados em suas terras; vedam, nas terras indígenas, a prática de caça ou pesca por pessoas estranhas às comunidades indígenas; asseguram imprescritibilidade e inalienabilidade dos direitos dos indígenas sobre suas terras”.
Juliana de Paula Batista, advogada do ISA (Instituto Socioambiental), disse que o novo parecer é “chocante” e “estarrecedor”. “A primeira coisa que choca é o total desrespeito aos povos indígenas. A decisão da terra indígena Raposa é para a Raposa, não para os povos indígenas do país. A segunda coisa que choca é dizer que a medida é para mitigar os conflitos. Na verdade é mais uma negociação do governo com a bancada ruralista. É mais um sinal claro de que o comprometimento deste governo é com a grilagem de terras e sacrifício de vidas humanas dessa população tão vulnerável. É estarrecedor o que o governo está fazendo, esse ato de irresponsabilidade, e a gente espera que a posteridade cobre do presidente Temer esse crime que está sendo cometido.”
A assessoria do STF informou que o ministro Alexandre de Moraes está de férias e não foi possível localizá-lo para comentar as declarações de Heinze. O deputado Serraglio, também membro da bancada ruralista, não se manifestou, assim como o atual ministro da Justiça, Torquato Jardim.