Um dia após a morte da indígena Maria Evangelina Índio Silva, 66 anos, do povo Aranã, ocorrida em 15 de março, no Hospital de Campanha aberto em Betim, Minas Gerais, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, publicou decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, que cobra medidas do governo federal para a preservação da população indígena durante a covid-19.
Entre as determinações, destaque para a suspensão da Resolução nº 4, de janeiro de 2020, da Fundação Nacional do Índio (Funai), que restringiu a autodeclaração de indígenas em todo o país sob a justificava de “padronizar e dar segurança jurídica” ao processo como forma de “evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais voltados a essa população”. Barroso considerou a determinação inconstitucional.
O ministro também negou a homologação da seção 3 do Plano Geral de Enfrentamento à Covid-19 para Povos Indígenas, que trata do novo Plano de Isolamento de Invasores. Barroso deu prazo de cinco dias para a apresentação de um novo plano. O ministro também determinou a prioridade na vacinação aos povos indígenas localizados em terras não homologadas e urbanas sem acesso ao SUS. Leia a decisão do ministro aqui.
Apesar de ser uma importante vitória para os povos indígenas, em especial, àqueles que se encontram na realidade de contexto urbano, para o povo Aranã esta vitória chega com um gosto amargo, com a morte de Evangelina, e da internação de seus filhos Miriam Martins Silva e Marcos Índio Silva, além de seu esposo Cláudio Antônio Silva. Um família vítima da covid-19.
No primeiro semestre do ano passado, aproximadamente 20 pessoas dos povos Pataxó HãHãHãe e Pataxó da Aldeia Naô Xohâ, localizada no município de São Joaquim de Bicas, atingida pelo crime da Vale no rompimento das barragens da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, tiveram que sair da aldeia devido às péssimas condições e contaminação por causa dos minérios.
O descaso com a saúde do povo obrigaram o deslocamento da comunidade para a região metropolitana de Belo Horizonte, no Bairro Jardim Vitoria, onde foram todos infectados pela covid-19, e não receberam nenhuma assistência por parte dos órgãos responsáveis pela saúde indígena. Denúncias foram feitas pelo cacique Haior Pataxó e pela liderança Célia Angohô Pataxó HãHãHãe, mas nenhuma providência foi tomada.
O Plano de Vacinação, divulgado em dezembro de 2020 pelo Ministério da Saúde, inclui entre as prioridades para a vacinação apenas os indígenas definidos pelo governo federal como “aldeados” – termo que remete à perspectiva integracionista, vigente na Ditadura Militar, e que previa a “integração” dos indígenas à sociedade envolvente.
O descaso com a saúde do povo obrigaram o deslocamento da comunidade para a região metropolitana de Belo Horizonte onde foram todos infectados pela covid-19
O plano deixou de fora os indígenas que vivem nos centros urbanos. Segundo dados do Censo do IBGE de 2010, estes indígenas representam 46% da população indígena no Brasil. No caso dos Aranã, e de diversas outras etnias que estão no contexto urbano de Belo Horizontes, e demais cidades da região Metropolitana, a expulsão dos seus territórios por invasores os levou ao ambiente urbano. Portanto, a decisão do ministro Luís Barroso corrige, em parte, a dupla violência cometida contra estes povos, mas ainda resta a solução para a violência cometida pela omissão do governo federal, que tem o dever constitucional de demarcar e regularizar as terras indígenas.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) se manifestou através de nota em 18 de janeiro de 2021, contra a política de morte adotada pela Funai e pelo governo federal contra as comunidades indígenas. Na nota, o Cimi afirma: “nessa situação grave de pandemia sanitária, excluir grupos indígenas do acesso à política de saúde pública é um contrassenso político e humanitário. É importante salientar que vários grupos indígenas que estão nos centros urbanos têm como um dos motivos para estarem nestes locais a expulsão dos seus territórios por invasores, portanto, um ato de violência, que não justifica sua exclusão. O fato de o indígena estar fora da aldeia não faz com que ele deixe de ser indígena”. Leia a nota aqui.
Já no início do século XXI, em 7 de fevereiro de 2002, Dona Rosa Aranã afirmou durante entrevistas concedidas ao Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES/MGF) e à Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ) que “o problema é que a gente não tem terra. A gente está na cidade obrigado. Viver junto é outra coisa. A terra para gente é bem melhor; mais importante que o reconhecimento étnico oficial. Mas tudo volta para o reconhecimento, não é?”.
No caso do povo Aranã, a dimensão utópica da comunidade imaginada define a luta de um povo pelos seus direitos: “nós somos índios em qualquer lugar. Não importa onde estamos; não importa se somos reconhecidos… A gente se sente diferente dos outros. A maneira de ser da gente é diferente. Não sei, não sei se é… mas a gente sente assim. A gente precisa é estar junto”, disse Dona Rosa Aranã em entrevista concedida ao CEDEFES/MGF e à ANAÍ no dia 7 de janeiro de 2001.
Com o processo de expulsão de suas terras, e a não regularização do território reivindicado, hoje se constata a presença dos Aranã sobrevivendo em contextos urbanos de Araçuaí, Coronel Murta, Pará de Minas, Juatuba, Betim, Sete Lagoas, Belo Horizonte e São Paulo. Acreditamos que no contexto urbano da região metropolitana de Belo Horizonte e nas cidades circunvizinhas existam hoje mais de seis mil indígenas das mais diversas etnias tentando sobreviver nesta realidade desafiadora e cheia de contradições.
Houve uma vitória no sentido de garantir que os indígenas sejam atendidos nas suas necessidades da saúde, mas a vitória principal, que é a garantia de suas terras, livres de invasores e de violações, em plena posse de seus habitantes, onde os seus projetos de vida e as suas ancestralidades possam ser exercidos em plenitude, ainda é uma dívida histórica não paga e que precisa urgentemente ser quitada.